O Incauto Caso do Cara que Pirou

 

 

            Pensamento1 –

 

            Solução para a dívida é renegociar. Foi o que me disseram. Eu acreditei. 
           

            Ato 1 –

 

            Entrei em uma espiral de dívidas – grande novidade. Desde criança meu pai, um pessimista de carteirinha, dizia que todo brasileiro nascia devendo, que criar um filho custava os olhos da cara e me fitava, com aquelas órbitas de urubu.

            Eu nunca soube se ele me amava. Nunca perguntei. Ele nunca me disse e assim ficamos: um não sabia o que sentia pelo outro.

            Resolvi partir para a ação e conversar com meus credores.

 

            Ato falho 1 –

 

            Credores querem dinheiro. Sempre o dinheiro é a questão. Dizem ser a raiz de todo o mal, talvez por que eu tenha nascido sem nenhum, herdando uma sina de me avultar em dívidas e rolar pelo montanha abaixo, acreditava naquele pensamento: dinheiro é mal. Estava casado naquela época, graças à caridade de alguém, talvez mais desesperada do que eu para ter um marido.

            Durou pouco a relação. Desgastou-se nas dívidas, nos problemas, em nossa falta de querer um ao outro.

           

            Reflexão 1 –

 

            Gostaria de saber por que me casei. Perguntei, perguntei e fiquei sem resposta. Começamos a namorar na faculdade. Nos conhecemos em uma fila da lanchonete. Ela deixou cair o tíquete e eu peguei.

            Obrigada. Ela disse.

            De nada. Eu respondi.

            Não exijam perfeição literária. Você quer saber do meu caso ou não?

 

            Pensamento 2 –

 

            Os credores. Precisei implorar ao pessoal da telefônica. Não adiantou. Ficamos sem telefone fixo. Depois sem gás, sem luz, sem jeito.

            Foi um problema com a linha, dizia aos amigos, quando recebiam do outro lado o comunicado:

            Esse telefone não pode receber chamadas.

            Alguns brincavam, com uma cor de malícia no fundo da voz:

            Melhor pagar a conta. A frase era acompanhada por uma risada.

 

            Pensamento 3 –

 

            O certo é que fui me cansando da vida e de Catarina e ela de mim.

            As pessoas se cansam umas das outras. O certo era isso: não havia motivo. Sim, não tínhamos dinheiro. Correto, eu não tinha iniciativa. Exato, eu não era bonito. E daí? Você conhecia a Catarina? Não era nenhuma beleza e, se não fosse por mim, pela minha quase caridade, teria ficado solteira. Tiiiia. Sim, ela seria tiiiia.

           

            Ato 2 -

           

            Estava na fila da telefônica. A essa altura meu casamento com Catarina já rodava pelo ralo abaixo. Não havia solução. Eu a olhava, com aquelas faces amareladas, encarando a novela das 8 que começa as nove – e disso todo mundo sabe. Ela parada. Fixa. Amando o Fábio Assunção. Ela chorava. Contorcia-se apertando ao peito uma almofada estampada de mau gosto que a mãe dera de presente. Eu sabia. Ela queria apertar o galã. Eu abria uma lata de cerveja. Balançava. Degustava e vingava adorando as atrizes. Cada uma delas por sua vez. Camila, Luana, Graziela... Todas eram minhas em pensamento. Se ela soubesse o que se passava em minha mente, sairia correndo envergonhada.

            Só tenho como meus os pensamentos.

            Quais seriam os de minha esposa com os artistas?

            Melhor eu não saber.

            E lá ia a cerveja.

            Catarina sentava-se no sofá sobre as próprias pernas. Encolhia-se a um canto, recostada no braço do mesmo. Eu, na poltrona, de chinelos, bermuda ou pijama azul, sem camisa, porque o calor é de matar, ficava olhando a tela e reparando na minha mulher.

 

            Pensamento 4 –

 

            Não nascemos um para o outro. A história de almas gêmeas é a mais pura invenção. Por que ela não ficou comigo na pobreza?

 

            Ato 3 –

 

            Lembrei do casamento. Foi uma capela bonita que ouviu o meu s-i-m, e eu acho que escutei o “sim” dela. Meia dúzia de parentes e amigos. Minha sogra com ar de defunta viva. Meu sogro um joguete. Meus pais sorriam:

            Finalmente ele casou.

            Casei, mas não morri.

            Catarina até que ficou bem de noiva. O vestido alugado foi caro. Ela me contou depois. Fiquei com certa raiva. O dinheiro daria para ajudar nas contas da casa. Acho que foi por isso que me casei: queria alguém para rachar o aluguel. A economia saiu pela culatra.

            Ela entrou na igreja ao som, distorcido, de um bolero. Ravel? Seja que seja.

            Atravessou o corredor sob os olhares dos nossos colegas de faculdade. Éramos recém formados e agora casados.

            Tinha um cara que era vidrado nela. Um tipo franzino, de barbicha, rosto comprido e cabelo espetado. Reparei nas olheiras dele naquele dia. Parecia embriagado. Teria bebido por ela?

            Embriaguei-me tantas vezes e nunca pela minha esposa.

            Vendo aquele sujeito, vendo Catarina se aproximar, vendo aquelas pessoas, senti um certo êxito. Levei alguém ao altar. Depois pensei: será que eu fui levado?

 

 

            Ato 4 –

 

            Na fila da telefônica peguei a senha naquela carretilha engraçada. Sentei junto a outros tantos consumidores em uma cadeira de plástico. A sala era grande e logo percebi, em um painel eletrônico vermelho, que tocava um bip e chamava pela ordem, que eu demoraria um bocado a ser atendido.

            Dei sorte. Parece que muita gente ia desistindo e depois de quase uma hora fui chamado.

            Uma moça bonita, batom vermelho, sensual. Uma camiseta apertada e vermelha desenhava o seu sutiã. Forcei a vista para tentar ver algo mais. Ela interrompia. Queria saber minha proposta, se eu queria financiar a dívida e coisa e tal. Alonguei o prazo, paguei uma parcela e poucos meses depois cortavam de todo jeito.

 

            Ato Falho 2 –

 

            Ela disse que eu bebia muito e me deixou.

            O que você queria?

            Um relato meloso do nosso rompimento?

            Não sou de choradeira, de correr atrás ou de puxar o saco.

            Pobre de Marré, Marré, Pobre de Marré de si...

            Era uma cantiga boa, quando criança.

            No elevador, voltando para o apartamento vazio, ordem de despejo na mão. Solteiro de novo, gordo, abatido e sob ameaça de perder o emprego, a ladainha na cabeça.

 

            Pensamento 5 –

 

            Sei que foi uma idéia idiota.

            Cheguei ao banco e coloquei uma arma na cabeça do gerente.

 

            Ato 6 –

 

            Estou cercado e os funcionários em pânico. Gente deitada por todo lado.

            Eu sou pobre, pobre, pobre...

            Quero dinheiro, quero sossego, quero uma vida que nunca tive.

 

            Pensamento 6 –

 

            Enchi muito a cara antes de partir para a agência.

            Pense bem: mulher largando, sem emprego. Fui demitido. Não falei? Não, eu não falei.

 

            Ato 7 –

 

            Você sabe, disse o chefe. Contenção de despesas. Contenção? Tinham que conter logo eu? Esvaziei a mesa e as gavetas. Os colegas me viraram as costas. Podia ouvir seus pensamentos:

            Antes ele que eu.

 

            Pensamento 8 –

 

            A arma eu a tinha como herança. Era um velho trinta e oito com balas que nem sei se disparavam.

            Uma delas disparou, para o alto, enquanto eu dançava sobre a mesa do gerente com o povo me encarando.

            Louco!

            Pegou no teto de gesso e foi uma bagunça. Gritaria. Ruídos. Uma bomba de gás veio sei lá de longe. Ouvi tiros, estampidos e caí ao chão.

 

            Ato 8 –

 

            Eu não morri, sobrevivi e vi minha foto estampada nos jornais.

            O advogado disse que meu “stress” será um atenuante. Vai alegar insanidade temporária.

            Estou agora ouvindo o juiz pronunciar alguma coisa. Mas ele fala muito baixo. E ainda tem essa cantiga na cabeça:

            De marré, marré, marre! De marré de si.