Oh tempo bom que não volta mais

Hoje em dia, nem mais galinha tem pra nós tanger...No outro tempo, no outro tempo era muito bom, as portas largas das casas de duas partes, a gente podia colocar o queixo na mão e ficar espiando quem ia e quem vinha, fazia carreira quando escutava o homem do picolé trocando o bichinho gelado por litro, garrafa ou meia garrafa.

O medo era derrubar a bateria, pois não? Toda casa tinha uma bateria, e num era inox não, era de alumínio mesmo... Enfeitando a cozinha, era o orgulho da dona da casa e a raiva das filhas moças, pois não? Todo sábado era dia de ariar toda a bateria, tinha de deixar brilhando e quarando no sol por um tempo, do outro lado, o estojo de mantimentos em cima do balcão. Podia comprar de duas cores: ou vermelho, ou azul. Mas antes de chegar a cozinha, tinha o corredor da casa, nele ficava a cristaleira, eita, nessa num era todo mundo que metia mão não. A chave era no bolso da mãe e só podia usar as louças em dias de festa, ou então quando a casa recebia visita. Para esta, na casa tinha a toalha de banho, a rede, o lençol, o prato, o copo e o melhor lugar da casa. Não podia ser perturbada ou contrariada.

Na casa tinha piso de cimento queimado, encerado no querosene, depois apareceu o cimento de cor, antes mesmo de aparecer o mosaico ou a cerâmica. Na carreira, a gente tinha de ter cuidado porque o chão era tão limpo que escorregava. Ainda na sala, do lado da porta larga de duas partes, ficava o oratório entupido de santo e a banquinha do rádio. Esse era o deus da casa, no caso de uma queda, era melhor cair, arranhar o joelho a deixar o bichinho ir ao chão. Chamando a nossa atenção, tinha o relógio de parede e a zoada do pendão de um lado para o outro, nossa, não tinha como não ver porque do lado do relógio ficava o quadro da santa ceia, do sagrado coração de Jesus e de Maria, além do quadro de Iemanjá.

Tudo isso tinha de passar na nossa cabeça em um segundo, antes que o homem do picolé partisse e bem antes de pensar em correr pela casa, porque não tinha perdão. Na cozinha tinha o talo santo, a pimba do boi, a sola da sandália e se não quisesse ficar sem picolé e com o couro quente, tinha de pensar bem.

Melhor mesmo era ficar na janela, em uma delas, porque no outro tempo existiam várias janelas na frente da casa. A gente podia vestir a roupa de ir para a calçada e sentar nela, quando não, pegava o estojo de cadeira x e arrumava a calçada para a chegada das visitas e meia hora de prosa.

Logo escurecia e lá ia nós tanger as galinhas, esperar o homem dó cuscuz, tomar a sopa, depois rezar, dormir e sonhar com o picolé que teve vontade, mas não chupou...

Oh tempo bom que não volta mais.