Nem aí pra conferir

E o que foi? Andou comendo arame farpado? Engoliu uma pá de caliça ou uma colher de cimento? Será que você come chumbo e eu ainda não sei? Sim, porque demorar um tempo desse no banheiro, só posso desconfiar dessas coisas. Ainda bem, vizinha, ainda bem que você está aqui e serve de testemunha do meu sofrimento, sim, porque todo dia é essa mesma ladainha e se eu vou dizer a alguém, vão logo dizer que sou doida, estou esclerosada, faço tempestade com uma gota de água, mas não é não, não é mesmo. Daqui a pouco ele sai do banheiro, depois de duas horas enfiado lá dentro, sabe lá fazendo o que e vai logo gritando: Cadê, o comê tá pronto? Tou morrendo de fome, doidim pra tirar uma soneca.

Ele pensa que a véia aqui é uma escrava, tudo sou eu que tenho que dar conta sozinha, do despontar do Sol à chegada da lua: catar o feijão, escorrer o arroz, descascar as batatas, cortar o jerimum e ainda ter de ir ao mercado comprar a mistura, e vou, morrendo de medo de entrupicar e cair no chão, levar uma topada e arrancar o chaboque do dedo ou mesmo incracar a unha, ser asaltada... Eu sei, mulher, eu já sei o que tu vai dizer, mas não é bem assim não, só sabe de verdade quem convive, espia, tu tá é podre, condenado, morreu e esqueceram de enterrar, tá sentindo? Eu não aguento mais uma carniça dessa, não aguento. O estômago emboloa, vem a vontade de vomitar, tomo um gole de café e a azia me ataca. Só falto colocar o bofe pra fora e o desgraçado ainda sai resmungando: Tá achando ruim? Vá morar no abrigo que boto uma mais nova aqui... Mulher, tou te contando por consideração aos anos de amizade, tanto tempo que a gente mora aqui parede com parede que confio em você. Num sai contando nas casas dos outros não o que você escuta e vê aqui não. Não, amiga, não pense que estou desconfiando de você ou chamando a amiga de fofoqueira não, não entenda mal, não é assim, é apenas precaução, porque uma mulher sábia, pois bem...Sei que às vezes nos temos nossas teimas, mas isso não é motivo da gente ficar intrigada, dizemos umas verdades que doem na lata, xingamos, lavamos a roupa suja, mas também dizem que nas melhores famílias de Londres existe escândalos, imagine aqui nesse fim de mundo que a gente vive, entupido de muriçoca e lixo, sem esgoto por debaixo da terra. Tenha paciência que deixo a senhora falar, é que hoje meu remédio ainda não fez efeito e fico assim, atacada dos nervos, com uma vontade de chorar inté provocar uma enchente... Também, coisinha, quando você fala cospe a gente todinha, aí,desculpa, não devia ter dito isso, mas já falei, tá falado, todas da rua dizem a mesma coisa, porque logo eu que não sou baú devo ficar calada? Eu sei, sei bem que é pela falta dos dentes, quando a boca é banguela, as palavras têm mais dificuldade em sair, mas também, mulher, você bem que podia cooperar porque quando você abre a boca não tem cristão que aguente, pense, é um bafo de gamba, vote, você pensa que por não ter dente não precisa escovar a boca, mas precisa, precisa e muito. Pelo menos colocar um tiquinho de pasta na língua e dá o foto, fazer o gargarejo, mascar uma marcela, um cravo, umas folhinhas de hortelã na boca... Não chore, não chore que vou me sentir culpada, cê sabe que somos amigas e entre amigas não pode ter segredo. Ande com esse serviço, véi! Entupiu o caso , foi? Que esropou de água é esse numa só descarga?! Litros e litros jogados fora... Valha, valha São Cosme e Damião, meu deus, espia comadre, enquanto você fica aqui espiando minha casa, querendo saber do que se passa pra sair falando, as pestes de suas galinha pularam a cerca e estão fazendo o maior estrago no meu quintal, veja, acabaram com meu pé de mastruz, bicaram minhas malvas, meu pé de capim santo, veja como ficou minha trepadeira... É nisso que dá, é nisso que dá ficar dando uma de boazinha, de vizinha caridosa, puxe daqui e não volte mais, bafo de onça, espírito ruim... E tu, velho, tá iguiçado na privada, é? Ou tá intupido de bosta? Pra ele tanto faz como tanto fez, o mundo desaba e ele nem aí para conferir...