Eita vida desmantelada

Quem disse que eu não ia? Mas eu não digo mesmo, não perdia um vesperal ou uma matinê que sempre entrava pela boca da noite.

As mulheres já me chamavam de pé de valsa e os magotes de cabra besta tudo com inveja de mim. Não perdia um forró, podia ser o forró do leite, da qualhada, da moita, do Zé ceguinho, do cumpade Caboré, qualquer um eu tava de dentro.

Chegava da maré, descamava os peixes, tomava aquele banho de cuia com sabão preto pra tirar o cheiro forte dos peixes, depois lavava o corpo com sabão de côco, botava minha calça de duas cores, minha camisa de botão e manga longa, calçava minhas botas, sabendo que não podia esquecer o cinto, punha meu chapéu e partia montado na bicicleta.

Parava aqui e acolá para uma virada de pinga pra esquentar as orelhas, animar o espírito, espantar o mal olhado e seguia até meu destino. Era bom que só caçar tatu em dia de chuva com trovão e relâmpago.

Lembro de um dia que num queria ir não, de jeito nenhum, tinha acordado meio desarranjado do estômago, uma gastura infeliz de tudo, um rangido de dente, e uma caganeira de perder o juízo, mas a teimosia do destino e por insistência dos amigos acabei indo.

Era uma noite de fogueira, umas duas léguas de casa, a gente queria fazer bonito, fomos de carroça. No meio do caminho, não aguentei o saculejado e parei pra uma escapulida no meio do mato. Saí correndo, no desespero tirei toda a roupa e acocado fiquei inté sentir o alívio. Depois do serviço feito, cadê papel? Cadê sabugo para consertar o estrago? Não tendo outro jeito, limpei foi a cueca, me vesti e segui todo desconfortável, esquecendo inté o chapéu pendurado num galho de uma árvore.

Lá chegando, procurei logo um lugar mais afastado para me sentar, escolhi uma mesa mais escondida, não queria que ninguém sentisse o cheiro da carniça em mim. O forró truando, a cachaça entrando e as orelhas já pegando fogo. Todo mundo estranhando a minha indisposição de rodopiar pelo salão e os que já sabia, sarrando com a minha cara.

Lá pras tanta, a filha do coronel cismou de dançar mais eu. Eu disse que não, ela dizendo que sim, os amigos dando corda e eu que sou cacimbão, acabei indo dançar com a danada.

Era um forró lento, dois passo pro lado, dois passo pro outro, depois um outro forró mais arrochado, até que estava nós dois engatados.

A carne que não é nada fraca já em ponto de bala e a danada quanto mais eu descolada, mais ela me agarrava. Quanto mais eu queria parar, mais ela dava um jeito da gente continuar.

Foi quando a danada perguntou o que era aquilo que tanto crescia toda vez que a perna dela batia entre as minhas e eu dizia que era o tanto de amor que eu podia dar para ela. Ela perguntava se era tudo aquilo, eu dizia que era aquilo e mais um bocadinho. Ela dizia que estava aumentando e eu dizia que aumentava de poquinho em pouquinho.

Quando penso que não, nos abofelemos em um beijo de boca que só vi pelas costas o cano da espingarda do capanga do coroné: ou casa ou morre ali mesmo de pé junto! Nessa hora eu só via o povo precionando o nariz porque o bagaço desceu sem eu mesmo sentir.

E o jeito? Fiquei todo encabulado quando o som parou, as luzes se acenderam e todo mundo olhando para mim. Eu sem poder me esconder, de negar ou correr daquele lugar. Todo mundo viu a prova do crime que me obrigou a casar. A danada chorava, eu entalado, nada tinha pra dizer nem esconder a vergonha porque estava sem o chapéu. Se ao menos eu tivesse o poder de trocar os dentes, me transformar em um tatu e conseguisse me esconder em um buraco no chão e nenhum cachorro doido tivesse faro de me encontrar, mas não tinha, quanto mais tentava os dentes, mais o bagaço arriava. Pensei num desmaio, mas como não sou homem de fugir da responsabilidade, tratei logo de dizer sim, eu caso.

Casei ali mesmo, não voltei mais nem pra casa de meus pais, fui pai quinze vezes sem nunca mais poder dançar um forró de seu ninguém, só por causa de uma dor de barriga infeliz que me fez perder a cueca e o chapéu. Sem ela fiquei sem liga pra amarrar a comprida que inventou de crescer na hora errada e sem ele não pude me esconder da vergonha e a arma do crime.

A mulher é braba que só amançador de burro brabo, eu não posso arrastar o pé que ela já quer saber se eu vesti a cueca para ficar de cabimento com as amigas dela. Eita vida desmantelada, meu deus.