Meio baiano, meio mineiro, Justino Generoso não espera que o galo cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. O poeta e fazendeiro começa sua história onde termina a lenda ou termina a lenda onde começa sua história. Poderia ter vivido mais, se não fosse tão estragado. Trabalhou desde muito novo e se desgastou mais da conta. Viveu quarenta anos em minas. E com o mineiro, aprendeu a ser paciente, e manso. Desconfiado, no entanto. Calado, esperto. Cauteloso. Mineiro é sossegado. Vai comendo devagar o mingau quente pelas beiradas. Pelas estradas da vida, tudo passa devagar. O trem, a cidade, a multidão de mineiros... Pela janela do trem, vê-se um rosto pálido no esquife. Plantado no campo santo, o poeta espera tanto a ressurreição dos mortos, quanto a consagração da poesia.
Como quando era vivo, Justino Generoso senta na raiz que dá no córrego. Conta borboletas esvoaçantes. Faz poesia ao vento e pesca lambari no rio com o mesmo nome. Noutros tempos, o Lambari não secava. Agora mostra pouca água. Também o Saracura pede socorro. Três-potes canta pouco no gargalhar das águas. E o Juramento promete lavar as terras com o sangue do caçador de esmeraldas.
Vaqueiro Onofre contava à peonada e Chanana, escondida, escutava tudo. “Morte besta teve Generoso. Casou Mimosa, a vaca que mais leite dava na fazenda, a troco de um rufião chamado Boto-cor-de-rosa que nunca gerou uma cria. O patrão dizia que Durão ganhava a eleição. E ganhou mesmo! O patrão não perdeu a vaca selada em contrato verbal com um fio de bigode, mas o reprodutor que recebeu na aposta, nada valia. Com isso e outras desavenças mais antigas, ficou um ranço entre os dois fazendeiros. Venâncio Dólmen não gostava de perder. E Justino Generoso não voltava palavra atrás. Apostou tá apostado. Perdendo ou ganhando, tem que honrar a palavra.
— Juro por minha vida — disse Justino — de minha boca sai o que é justo, a palavra que não volta atrás.
— Tião não ganhou a eleição. Tião morreu antes — protestou Dólmen, esbravejando — O jogo não foi limpo. Não entrego o boi apostado.
— O nome que constava na cédula era de Tião — justifica Justino.
Dólmen eleva o tom de voz.
— Mas Tião já estava morto!
— Apostei no candidato e no partido. Palavra saída da boca de homem, não tem volta. Não aceito querela. Não quero demanda. Quero o boi casado na aposta.
— Durão ganhou com cédula eleitoral de um falecido.
— Então o falecido ganhou. Apostei que ele ganhava. Só não sabia que depois de morto.
— Quem vai governar o município?
— Durão.
— Então Tião não ganhou.
— Amigus Plato, magis amica Veritas.
Venâncio Dólmen fez-se de entendido. ‘Doutor Justino Generoso me chama de amigo’
— Entrego o boi. Estou perdendo pouco.
Perder pouco. Naquele caso, o que seria? Quem tem mais de cinquenta reprodutores, perder um pode significar perder pouco.
Robert intervém.
— Dá-me paciência! Agora rompes a fronteira da realidade e te embrenhas numa ficção descabida. Mostrar um diálogo em Latim, no meio da pastagem?
— Bobinho! A carta que meu avô escreveu, narrando o fato a um amigo, faz parte do processo que levou Dólmen para a cadeia.
— Cruzes! Não sei se falas a verdade ou me tapeia.
— O trabalho que faço, não requer apresentação de prova documental, ainda assim, eis aqui o rascunho da carta que meu avô endereçou ao Dr. Guimarães, datada e assinada no ano de 1973. Leia:
...Ora Doutor, rasguei meu Latim, no meio do pasto: ‘Amigus Plato, magis amica Veritas.’ O camponês se viu atarantado, tomou aquilo como se eu lhe estivesse estendendo-lhe a mão de amigo, e entregou o boi da aposta. Em casa, eu ria, contando a Corina e acrescentava pitadas de humor... Naquela noite... naquela noite... Corina estava tão bonita! E me perguntou: ‘O Cravo nunca vai brigar com a Rosa, não é meu Nego?’ — ‘Nunca, minha Flor!’ Aí, o resto eu não conto, Doutor’.
— Fico Imaginando, quanto Dr. Guimarães riu, lendo a carta do amigo. E depois chorou com a notícia da morte.
Robert nem quis contestar o aspecto temporal, sabia prontamente que Guimarães Rosa morrera em 1967. Ele, Robert, apenas dialogou com os registros históricos que guardava em sua mente:'Como pôde Dr. Guimarães ter recebido uma carta a 31 de janeiro de 1973?' Mas preferiu deixar que o leitor descubrisse o descuido. Afinal, Ravenala daria uma resposta, nada convincente: 'Escrevo ficção, ou Dr. Guimarães amigo de meu avô, não é o mesmo João Guimarães Rosa.' E continuou a leitura silenciosa da carta. No final, Justino dizia de sua intenção de trocar o rebanho de corte, por gado leiteiro. Resolveria parcialmente o problema, porque as vacas que não davam mais crias tinham que ser descartadas do mesmo jeito, senão, chegaria ao ponto de faltar pastagem.
Justino Generoso lamentava pensadno nos bois sendo tocados ao matadouro. Sentia saudade. ‘Cada boi recebe um nome. Depois é doído mandar para o abate um animal a quem se tomou afeição.’
O amigo respondeu a carta e Generoso guardava como valioso tesouro: “Boi sente tristeza em ambiente tenso. Pesado. Cheirando a sangue... Sabe que vai morrer, e tem saudade de campo largo, campo grande, aberto ou fechado... Sente saudade dos amores que teve por vacas que não verá jamais... ‘Saudade em boi, dói mais do que em gente...’
O advogado de defesa, tentou impugnar a prova, alegando que se tratava de uma crônica humorística, não de uma prova documental. O juiz desconsiderou a argumentação da defesa, e aceitou a carta como elemento de prova a ser investigado. A polícia civil intensificou a investigação sobre a morte prematura de Justino Manuel Batista Generoso. Finalmente, Dólmen foi outra vez chamado a depor. Caiu em contradição. Julgado e condenado puxou quinze anos de cadeia.'Morte premeditada, concluiu o inquérito policial.'
Venâncio Dólmen sabia da contenda de Generoso com o vizinho, por causa de uma cerca confrontante. Então, planejou a vaquejada no Borá, e convidou os fazendeiros da redondeza com toda sua vaqueirama. Coronel Generoso não tinha maldade. E foi. Foi à vaquejada na fazenda de Venâncio Dólmen. Dizem que Generoso caiu do cavalo e se estrepou num toco de aroeira. Conversa! Aquilo foi golpe de peixeira...
Na morte dele, muita gente fungava, até homem chorava e tossia escorrendo água nos buracos das ventas. Nhá Corina mandou servir chá de jasmim e cravo-de-defunto no velório do marido. Correu o boato que o finado era santo. Mas... Na missa de corpo presente, o padre não comentou o milagre. O povo é que dizia, que doente ficou curado de mal respiratório, resfriado, bronquite, reumatismo, e depressão, depois de tomar o chá no velório de Justino Generoso. Corina vestiu luto de sete dias e bebeu chá-de-jasmim, para controlar o baticum do coração, doído de paixão pelo marido.
Orava pela salvação da alma dele visitando todo mês o corpo santificado de Justino, dado aos vermes no cemitério de Sete Passagens.
***
Leia também do autor Adalberto Lima:
- Lagoa azul ( texto reeditado)
- Clara e Francisco(miniconto)
- ILHA DO MEDO
O VÉU DO TEMPLO
PEGADAS NA AREIA
- Vendilhões do templo
- O FANTASMA (suspense)
- A paisagista
O canto da sereia - história de amor
Passageiro da agonia II
Caverna particular
Um sorriso e uma lágrima
Não cabe no coração (miniconto)
Fernão Noronha Capelo
Ciganada (miniconto)
***
Leia e comente.
Adalberto Lima.
Imagem Google
Como quando era vivo, Justino Generoso senta na raiz que dá no córrego. Conta borboletas esvoaçantes. Faz poesia ao vento e pesca lambari no rio com o mesmo nome. Noutros tempos, o Lambari não secava. Agora mostra pouca água. Também o Saracura pede socorro. Três-potes canta pouco no gargalhar das águas. E o Juramento promete lavar as terras com o sangue do caçador de esmeraldas.
Vaqueiro Onofre contava à peonada e Chanana, escondida, escutava tudo. “Morte besta teve Generoso. Casou Mimosa, a vaca que mais leite dava na fazenda, a troco de um rufião chamado Boto-cor-de-rosa que nunca gerou uma cria. O patrão dizia que Durão ganhava a eleição. E ganhou mesmo! O patrão não perdeu a vaca selada em contrato verbal com um fio de bigode, mas o reprodutor que recebeu na aposta, nada valia. Com isso e outras desavenças mais antigas, ficou um ranço entre os dois fazendeiros. Venâncio Dólmen não gostava de perder. E Justino Generoso não voltava palavra atrás. Apostou tá apostado. Perdendo ou ganhando, tem que honrar a palavra.
— Juro por minha vida — disse Justino — de minha boca sai o que é justo, a palavra que não volta atrás.
— Tião não ganhou a eleição. Tião morreu antes — protestou Dólmen, esbravejando — O jogo não foi limpo. Não entrego o boi apostado.
— O nome que constava na cédula era de Tião — justifica Justino.
Dólmen eleva o tom de voz.
— Mas Tião já estava morto!
— Apostei no candidato e no partido. Palavra saída da boca de homem, não tem volta. Não aceito querela. Não quero demanda. Quero o boi casado na aposta.
— Durão ganhou com cédula eleitoral de um falecido.
— Então o falecido ganhou. Apostei que ele ganhava. Só não sabia que depois de morto.
— Quem vai governar o município?
— Durão.
— Então Tião não ganhou.
— Amigus Plato, magis amica Veritas.
Venâncio Dólmen fez-se de entendido. ‘Doutor Justino Generoso me chama de amigo’
— Entrego o boi. Estou perdendo pouco.
Perder pouco. Naquele caso, o que seria? Quem tem mais de cinquenta reprodutores, perder um pode significar perder pouco.
Robert intervém.
— Dá-me paciência! Agora rompes a fronteira da realidade e te embrenhas numa ficção descabida. Mostrar um diálogo em Latim, no meio da pastagem?
— Bobinho! A carta que meu avô escreveu, narrando o fato a um amigo, faz parte do processo que levou Dólmen para a cadeia.
— Cruzes! Não sei se falas a verdade ou me tapeia.
— O trabalho que faço, não requer apresentação de prova documental, ainda assim, eis aqui o rascunho da carta que meu avô endereçou ao Dr. Guimarães, datada e assinada no ano de 1973. Leia:
...Ora Doutor, rasguei meu Latim, no meio do pasto: ‘Amigus Plato, magis amica Veritas.’ O camponês se viu atarantado, tomou aquilo como se eu lhe estivesse estendendo-lhe a mão de amigo, e entregou o boi da aposta. Em casa, eu ria, contando a Corina e acrescentava pitadas de humor... Naquela noite... naquela noite... Corina estava tão bonita! E me perguntou: ‘O Cravo nunca vai brigar com a Rosa, não é meu Nego?’ — ‘Nunca, minha Flor!’ Aí, o resto eu não conto, Doutor’.
— Fico Imaginando, quanto Dr. Guimarães riu, lendo a carta do amigo. E depois chorou com a notícia da morte.
Robert nem quis contestar o aspecto temporal, sabia prontamente que Guimarães Rosa morrera em 1967. Ele, Robert, apenas dialogou com os registros históricos que guardava em sua mente:'Como pôde Dr. Guimarães ter recebido uma carta a 31 de janeiro de 1973?' Mas preferiu deixar que o leitor descubrisse o descuido. Afinal, Ravenala daria uma resposta, nada convincente: 'Escrevo ficção, ou Dr. Guimarães amigo de meu avô, não é o mesmo João Guimarães Rosa.' E continuou a leitura silenciosa da carta. No final, Justino dizia de sua intenção de trocar o rebanho de corte, por gado leiteiro. Resolveria parcialmente o problema, porque as vacas que não davam mais crias tinham que ser descartadas do mesmo jeito, senão, chegaria ao ponto de faltar pastagem.
Justino Generoso lamentava pensadno nos bois sendo tocados ao matadouro. Sentia saudade. ‘Cada boi recebe um nome. Depois é doído mandar para o abate um animal a quem se tomou afeição.’
O amigo respondeu a carta e Generoso guardava como valioso tesouro: “Boi sente tristeza em ambiente tenso. Pesado. Cheirando a sangue... Sabe que vai morrer, e tem saudade de campo largo, campo grande, aberto ou fechado... Sente saudade dos amores que teve por vacas que não verá jamais... ‘Saudade em boi, dói mais do que em gente...’
O advogado de defesa, tentou impugnar a prova, alegando que se tratava de uma crônica humorística, não de uma prova documental. O juiz desconsiderou a argumentação da defesa, e aceitou a carta como elemento de prova a ser investigado. A polícia civil intensificou a investigação sobre a morte prematura de Justino Manuel Batista Generoso. Finalmente, Dólmen foi outra vez chamado a depor. Caiu em contradição. Julgado e condenado puxou quinze anos de cadeia.'Morte premeditada, concluiu o inquérito policial.'
Venâncio Dólmen sabia da contenda de Generoso com o vizinho, por causa de uma cerca confrontante. Então, planejou a vaquejada no Borá, e convidou os fazendeiros da redondeza com toda sua vaqueirama. Coronel Generoso não tinha maldade. E foi. Foi à vaquejada na fazenda de Venâncio Dólmen. Dizem que Generoso caiu do cavalo e se estrepou num toco de aroeira. Conversa! Aquilo foi golpe de peixeira...
Na morte dele, muita gente fungava, até homem chorava e tossia escorrendo água nos buracos das ventas. Nhá Corina mandou servir chá de jasmim e cravo-de-defunto no velório do marido. Correu o boato que o finado era santo. Mas... Na missa de corpo presente, o padre não comentou o milagre. O povo é que dizia, que doente ficou curado de mal respiratório, resfriado, bronquite, reumatismo, e depressão, depois de tomar o chá no velório de Justino Generoso. Corina vestiu luto de sete dias e bebeu chá-de-jasmim, para controlar o baticum do coração, doído de paixão pelo marido.
Orava pela salvação da alma dele visitando todo mês o corpo santificado de Justino, dado aos vermes no cemitério de Sete Passagens.
***
Leia também do autor Adalberto Lima:
- Lagoa azul ( texto reeditado)
- Clara e Francisco(miniconto)
- ILHA DO MEDO
O VÉU DO TEMPLO
PEGADAS NA AREIA
- Vendilhões do templo
- O FANTASMA (suspense)
- A paisagista
O canto da sereia - história de amor
Passageiro da agonia II
Caverna particular
Um sorriso e uma lágrima
Não cabe no coração (miniconto)
Fernão Noronha Capelo
Ciganada (miniconto)
***
Leia e comente.
Adalberto Lima.
Imagem Google
Texto: Adalberto Lima - Estrada sem fim (obra em construção)
Imagem: Internet.