Exéquias do coronel

 

 Poeta e fazendeiro, Generoso sentava na raiz que dá no córrego. Contava borboletas esvoaçantes, fazia poemas ao vento e pescava lambari no rio com o mesmo nome. Agora, o Lambari mostra pouca água. Também o Saracura pede socorro. Três-potes, que outrora cantava no gargalhar das águas. Chora. Lamenta. Implora por um copo d’água. Rio Verde, amarela, por causa da estiagem. Causos de onça não tem mais. Só a arrogância de Venâncio Dólmen  persiste. Ele não gostava de perder. E Justino Generoso não voltava palavra atrás. Apostou tá apostado. Perdendo ou ganhando, tem que honrar a  palavra.

— Juro por minha vida — dizia Justino  — meu candidato ganhou a eleição.
— Tião não ganhou. Ele morreu antes — protestou Dólmen, esbravejando.
— O nome que constava na cédula era de Tião — justifica Justino.
Dólmen eleva o tom de voz.
— Mas Tião  já estava morto, quando ganhou a eleição.
— Apostei no candidato e no partido. Não aceito querela. Não quero demanda. Quero o boi casado na aposta. O resto, não importa.
— Durão ganhou com cédula eleitoral de um falecido.
— Então o falecido ganhou. Apostei que ele ganhava. Só não sabia que depois de morto.
— Quem vai governar o município?
— Durão.
— Então Tião não ganhou.
— Amigus Plato, magis amica Veritas.
 
Venâncio Dólmen imaginou que  Justino Generoso o chama de amigo.

— Entrego o boi. Estou perdendo pouco.
Perder pouco. Naquele caso, o que seria? Quem tem mais de  cinquenta reprodutores, perder um pode significar perder  pouco.

Robert   intervém.
— Agora rompes a fronteira da realidade e te embrenhas numa ficção descabida. Mostrar um diálogo em Latim, no meio da pastagem...
— Bobinho! A carta que meu avô escreveu, narrando o fato ao amigo Guimarães, faz parte do processo que levou Dólmen para a cadeia.
— Cruzes! Não sei se falas a verdade ou me tapeias.
— O trabalho que faço, não requer apresentação de prova documental, ainda assim, eis aqui uma cópia da carta que meu avô endereçou ao Dr. Guimarães, datada e assinada. 
Robert leu:
 
Ora Doutor, rasguei meu Latim, no meio do pasto: ‘Amigus Plato, magis amica Veritas.’  E o  coronel Dolmênico se viu atarantado, tomou aquilo como se eu lhe houvesse estendido  a mão de amigo,  e entregou o boi, objeto  da aposta. Em casa, eu ria, contava a Corina e acrescentava pitadas de humor... Naquela noite... naquela noite Corina estava tão bonita!  E me perguntou: ‘O Cravo nunca vai brigar com a Rosa, não é meu  dengo?’ — ‘Nunca, minha Flor!’ Aí, o resto eu não conto, Doutor.
 
 Campo Grande jamais se esquecerá do coronel — dissera o padre, durante as exéquias — nem o tempo apagará sua memória. Sua humana alma sempre apartada da corrupção seja ela na glória eternamente coroada. Justino Batista foi um homem justo e generoso.

 No velório do Coronel Generoso, muita gente fungava, até homem chorava e tossia escorrendo água nos buracos das ventas.  Sinhá Corina mandou servir chá de jasmim e cravo-de-defunto, e logo, correu o boato que o finado era santo. Mas... na missa de corpo presente, o padre não comentou o milagre. O povo é que dizia, que doente ficou curado de mal respiratório, resfriado, bronquite, reumatismo, e depressão, depois de tomar o chá no velório de  Batista Generoso. A própria viúva bebeu chá-de-jasmim, para controlar o baticum do coração, doído de paixão pelo marido. Ela sempre ora pela salvação da alma do finado esposo,  e visita  todo mês o  corpo santificado de Justino, dado  aos vermes em Sete Passagens.

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Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
Enviado por Adalberto Lima em 26/04/2018