O cadeado do Iraci
Por décadas a fio, o Iraci Severino manteve seu açougue na rua do Alto, ou melhormente, rua das Flores, sem aromas nem odores, em Pitangui. A rua passou a ser chamada de Velho da Taipa, e o Iraci manteve-se impassível, e nem precisou mudar a placa porque placa nem havia. Era simplesmente o açougue do Iraci, sem letreiro, e estavam todos entendidos, pela vista e inconfundível e severo jeito de casa de carne à antiga…
A única porta frontal do estabelecimento, de metal, era em par, com uma folha de metal na parte de baixo, e barras na superior. Ao cabo de cada jornada, Iraci passava-lhes a corrente na junção das barras, e acionava o cadeado, um Papaiz bem reforçado. Na manhã seguinte, quando só o domingo era feriado, Iraci metia a chave no Papaiz, escancarando a porta à freguesia, que era boa, e a cachorrada, que mesmo à toa, era bem comportada. O cadeado, mantido preso à corrente, boquiaberto, tudo via sorridente.
A datas tantas, Iraci começou a perceber que andavam sumindo coisas de seu açougue, embora sempre continuassem poupados a balança Filizzola, que era mais moderna do que as de pratos, e o relógio de parede, inconfundível e único, com a imagem de um jogador de futebol no dial, cuja perna direita, voltada para o dígito 8 simulava fazer uma embaixadinha, sem jamais deixar a bola cair...desnecessário dizer que o uniforme do atleta era rubro-negro…
Mas o fato é que coisas andavam sumindo misteriosamente: uns cortes de carne, cobres deixados para o troco...e até facas...e nenhum sinal de arrombamento...ou nem ao menos testemunhos da vizinhança de algo ou alguém suspeito...
Ao cabo, contudo, tudo se resolveu, como por toque de mágica que se deu, ou de alguém que de seus atos se arrependeu: um indivíduo carnívoro por sinal, tendo comprado um cadeado igual, passara a trocá-lo pelo original durante o dia, toda vez que pretendia fazer uma rapa...cuidando sempre de fazer a devida devolução antes do madrugador Iraci que daquela sociedade secreta, nem em quimera jamais idéia tivera...
A carne é fraca.