O padre e os jasmins.
Lá pras bandas de Abelardo Luz morava um padre tão velho quanto o tempo, talvez mais velho que a cidade, que conhecia todo tipo de oração, cura, bênção e falava com Deus como se esse fosse um velho conhecido. Padre Neri era amado por todos os residentes e significava a salvação na Terra para aquela gente do interior. Ninguém sabia exatamente de onde vinha o beato, mas fato era que sua cordialidade e seu talento com as palavras fazia sua fama por todo o oeste de Santa Catarina, alcançando até algumas cidades mais próximas pertencentes ao Rio Grande do Sul. Apesar de versado em toda arte relacionada ao cristianismo, o padre era referência por sua postura no momento da confissão. Viúvas sedentas, mulheres infelizes porém cheias de libido, homens com seus pecados tão humanos quanto eles mesmos... todos eram consolados e livrados de seus temores pelas palavras doces do padrinho. Citações da Bíblia, demonstrações do grandioso e piedoso amor de Deus, possibilidades, e por parte do pecador, a promessa da melhora acrescida de um número de orações.
Num desses dias em que o frio congela as ventas, Neri preparou seu confessionário para o trabalho diário. Sua jarrinha d'água, um copo, o inseparável Novo Testamento e uma tonelada de paciência eram suficientes para enfrentar a longa fila de atormentados. Deu início ao seu trabalho pontualmente às seis da manhã, e o saldo de visitantes não diferia muito dos outros dias. Assim, prosseguiu com suas palavras até às três da tarde incessantemente.
Entre uma pausa e outra, percebeu que o clima mudara. Uma brisa quente atravessava as portas da igreja e transpassava os furos do confessionário. O padre se sentiu abraçado. "Graças a Deus", pensou, sentindo-se particularmente agradado, como um aluno que recebe elogios do mestre. Não percebeu, porém, que a cada fiel que se confessava, o calor aumentava, fazendo-o suar. Quando já estava pensando em fazer uma pausa e se retirar para trocar as vestes, ouviu uma voz muito característica falando do outro lado da grade de seu cubículo.
"Padre", dizia a voz de tenor, "peço, por favor, que me ouça".
Encantado com aquela calma e o delicioso perfume de jasmim que impregnou-se no ar, provavelmente proveniente do fiel que o requisitava, Neri sentou novamente em sua cadeirinha de palha e, interessado, cruzou as mãos sobre a grande barriga (alimentada periodicamente pelos bolinhos de chuva, cucas e bolachas de araruta produzidos durante as festas santas) e respondeu:
"Estou aqui, filho. Pode falar".
O fiel respirou fundo e despejou suas agruras de uma vez só, angustiado e firme:
"Padre, o que me trouxe aqui foi um acumulado de situações muito recorrentes, e sendo o senhor um conhecedor profundo da Bíblia, julgo-lhe hábil a opinar e determinar caminhos para estes acontecimentos. Pois bem, tudo começou com uma briga desnecessária entre eu e meu pai. Opiniões diferentes, o senhor sabe, sou muito mais jovem que ele e tenho diversos caminhos a seguir; ele, cabeça dura, forçou-me a seguir aquele que julgou mais correto, como se estivesse passando um negócio de família ao filho mais velho para cuidar. Mas, ao contrário do que ele gostaria, resolvi fazer as tarefas que me eram destinadas a meu modo. E não que não funcionasse, de fato era muito efetivo e meus modos eram muito elogiados pelas costas do velho. O tempo foi passando e nossas divergências se tornaram grandes demais, grandes a ponto de ultrapassar o tamanho de seu amor por mim, e por isso, fui expulso de casa. Agora pergunto ao senhor, por acaso isto é justo?"
"Filho, deves entender que nossos pais veem por cima de cercas e montanhas e que, enquanto somos jovens, também uma venda de ilusões cobre nossos olhos. Buscamos caminhos diferentes porque nossos instintos são curiosos, mas cabe a nós, como homens de bem, abraçar o certo mesmo que seja monótono e ignorar o que é descabível".
"Assumo meus erros, padre, e concordo com tuas palavras. Mas as atitudes de meu pai também não foram exageradas? Não teria ele também pecado? O que não compreendo é por que apenas eu devo pagar pelas minhas ações".
"Estas são as leis de Deus. Passa-lhe talvez pela mente que teu pai também foi menino como tu? E que ele também passou por situações parecidas com seu avô? A vida é um ciclo, rapaz. Hoje és tu que se encontra nesta situação; no futuro, pode ser teu filho".
"Não, padre", respondeu-lhe uma voz pesarosa e dura. "E não concorda o senhor que muito mais fácil seria se nenhuma alma precisasse passar por situações deste tipo? Que deveríamos ter a liberdade de simplesmente agir e sofrer as consequências provindas de nossas próprias experiências ao invés de basear-se nos problemas de quem surgiu antes de nós?"
"Meu bom menino, entenda que regras existem e que por mais que não gostemos ou não concordemos com seus dizeres, devemos segui-las para sermos pessoas de bem. Deus deixou suas regras na Bíblia Sagrada para que nos tornássemos sua imagem e semelhança, como Ele nos criou. Acaso queres fugir desta estrada? Prefere perder-se nos prazeres da carne do que subir as escadas do céu?"
O padre arrepiou-se ao ouvir o suspiro do homem. Minutos passaram em total silêncio até que uma voz rasgada exclamou:
"Maldito seja meu pai que amaldiçoa os homens e os coloca no cabresto da santidade".
Neri sentiu-se tonto. Buscou com as mãos trêmulas seu copo com água, mas esta estava turva e repleta de limo. Suas vestes pareciam pesadas, o calor era insuportável e ele tremia de medo, mas juntou coragem e, segurando seu crucifixo, abriu a porta do confessionário procurando quem havia atendido. Nada nem ninguém estava presente no local, exceto por marcas de cascos que pareciam ter sido marcadas a ferro quente no piso de madeira da igreja e um insuportável cheiro de enxofre.
Agarrado ao crucifixo do pescoço, o beato orou fervorosamente. Ouviu três badaladas do sino, sinalizando três horas da manhã. Não fazia ideia de que tanto tempo assim havia se passado; sentia fome, sede, sono e dor, muita dor pelo corpo todo. Seu corpo pesava e ele tentava gritar por ajuda, mas a voz se perdia na garganta. Elevando os olhos para o céu, sentia que alguém o ouvia, mas não obteve nenhuma resposta. "O bom filho à casa torna", pensou, mas pela primeira vez na vida, sentiu-se desamparado e desprotegido dentro do local que julgava mais seguro. Apressou-se em fechar a igreja e dirigir-se à sua residência.
Percebeu com assombro que o jardim da igreja, outrora composto de diversos tipos de flores, agora era composto por tristes e belos jasmins.