O sermão do encontro
Era Semana Santa na cidade dos sertões de Minas Gerais. Uma cidade bem pequena que caberia dentro do coração de alguma pessoa. Mais ou menos uns quatro mil habitantes. Viviam eles em função da agricultura, de algumas indústrias pequenas, do turismo, principalmente na época da Semana Santa, porque eram produzidas várias peças teatrais sobre o tema, desde o Domingo de Ramos até as comemorações da Ressurreição de Cristo. Tinha, também, a malhação e queima do Judas, um boneco recheado de balas, doces, amendoins e mensagens de reflexão dos dias atuais.
Na quarta-feira da Semana Santa, era realizada uma procissão de encontro entre as imagens de Nossa Senhora das Dores e o Senhor dos Passos. Pode-se dizer que era a segunda manifestação de frequência e também por estar próxima às comemorações da Sexta-Feira da Paixão.
No palco armado, na praça central da cidade, uma comissão de jovens e de casais trabalhava fervorosamente em busca da perfeição para a montagem do altar, onde o vigário local faria a sua homilia do encontro. Era fundamental estar o altar bem enfeitado, com flores roxas, hortênsias de cores mais escuras, de orquídeas e de outras flores, porque dentro das comemorações religiosas, na Semana Santa, a cor roxa era fundamental, porque era vista como um símbolo de respeito, de tristeza e de comoção.
João da Montanha, assim chamado o provável realizador de toda a programação. Era um senhor aposentado na área de engenharia civil. Um sujeito alto, magro, de cabelos brancos ondulados, bigode grisalho e barbas feitas todos os dias. Era muito querido na cidade e na região. Foi também prefeito desta cidade por três mandatos. Muito alegre, muito animado. Gostava muito de contar piadas, de cantar no coral e até era o roteirista das peças encenadas no auge da Semana Santa.
O vigário local, ponto fundamental das festividades, gostava muito de fazer suas festividades bem detalhadas. Não poupava tempo, nem dinheiro, nem ideias. Era muito querido entre o povo, mas também era muito enérgico e gostava de fazer algo diferente a cada ano. Sempre suas ideias eram bem aceitas, mas de vez em quando, causava um certo desconforto em João da Montanha. Os dois discutiam suas ideias. Viravam o rosto um para o outro, mas um momento depois faziam as pazes e comemoravam entre risos e abraços.
- João, dizia o Pároco:
- Estive pensando no seu roteiro deste ano. Ele é muito bonito, porém gostaria de que o púlpito fosse um pouco maior. Nos anos anteriores ele media dois metros de altura. Neste ano, se ele fosse um metro a mais, ou seja, passando para três metros de altura, as pessoas poderiam ver-me melhor, porque o sermão deste ano estará baseado diretamente na família. A família é o sustento da fé, é o sustento do amor e é o sustento para uma educação de qualidade. Pensei em fazer isto nos anos anteriores, mas a Sra. Maria Rocha me esclareceu que neste ano seria melhor. Olha que teremos a visita de nosso bispo diocesano. Ele é novo na diocese, mas ficou sabendo de nossas festividades e me ligou confirmando sua presença. Chegará ele às dezesseis horas. Faça o púlpito mais alto e também um pouco mais largo. Certamente ele ficará comigo no momento do sermão. Poderá ele falar, mas se o púlpito for maior, certamente caberá duas pessoas.
- Padre Marcelo, o João aqui estará pronto para fazer quaisquer coisas para o senhor e pela festa da cidade. Vou lembrar-lhe que a estrutura do palco está um pouco frágil. Devido às chuvas do final e do início do ano, as tábuas molharam e estão carunchadas. A Serraria do Milton está interditada pelo Ibama. Faltarão tábuas suficientes e será difícil comprar em outro lugar. Com minha experiência profissional, recomendo que, neste ano, o púlpito deveria ser menor que o do ano passado.
- Eu não aceito suas reflexões. O púlpito será maior, porque o bispo subirá comigo. Não farei este desgosto nem para mim, nem para a cidade e justamente ao novo bispo. O que ele pensará da cidade. Diminuir o púlpito... conversa fiada. Fique inteligente, amigo...
Com estas palavras, Padre Marcelo saiu furioso. Quando deu alguns passos, voltou imediatamente para perto de João e disse:
- Olha, além do púlpito alto, quero que espalhe capim seco no palco. Dará uma sensação de liberdade, de respeito e combinará com a época.
- Eu e o bispo, deste lado. Mais à frente, ficarão as imagens e o grupo teatral fará a encenação do encontro.
- Padre, a madeira não está boa. O Chico (um grande carpinteiro da cidade, foi considerado o melhor carpinteiro do Brasil) disse que os pregos não ficarão bem fixados. Com o peso de vocês dois, no púlpito de três metros de altura, poderá soltar e vocês poderão cair.
- João, não se preocupe. Caso haja alguma queda, o capim seco suavizará a nossa queda. Olha que sou perito em paraquedismo. Não me machuco. Ponha bastante capim. O Mauro disse que trará dois caminhões de capim. Ele e seus empregados da fazenda já carregaram e chegará em pouco tempo.
- Mas Senhor, isto é perigoso. Os senhores correrão risco de machucarem. Eu não farei isto. É loucura, é desrespeito...
- Não estou nem ai. Se não quiser fazer, outra pessoa o fará.
Com estas palavras, Padre Marcelo saiu furioso e com o telefone celular ao ouvido conversando com o bispo.
João, meio desolado, triste, porque sabia que aquela situação não teria um final feliz, foi conversar com o Chico. Chico assim disse:
- João, eu concordo consigo. A madeira está ruim. Os pregos não vão ficar bem seguros. Vou tentar fazer um aperto aqui, uma base ali, uns arames do outro lado. Ficará seguro, mas não me responsabilizo por nada.
- Para que o capim?
- Ele deve estar meio louco, pois discutir com o Padre não e uma boa ideia. Largue para lá. Ele é autoridade. Não fale nada...
- Você tem razão, Chico. Ele está preocupado com tudo. Sempre ele me xinga. Já estou ficando velho. Não quero nenhum aborrecimento para mim.
- Se der algo errado, não é sua culpa.
Desta forma, Chico concretizou o púlpito. O caminhão de capim seco chegou e foi espalhado. As pessoas encarregadas dos enfeites fizeram o seu trabalho e com brilhantismo esperavam o momento da encenação.
Por volta das vinte horas, as procissões saíram. A procissão do Senhor dos Passos saiu da parte de baixo da cidade. A procissão de Senhora das Dores saiu da parte de cima da cidade.
Decorridos uns cento e vinte minutos, as duas procissões se encontraram na praça. Padre Marcelo e o senhor bispo estavam a seus postos. A banda de música executava uma linda marcha fúnebre de nome Mestre Tobias. Esta marcha era predileta do maestro, porque existiam dois solos: um do trompete e o outro do eufônio.
No local e horas marcados, Padre Marcelo e o bispo iniciaram uma saudação em forma de música, na qual foram acompanhados por uma multidão que se aglomerava perto do palco, na praça.
Chico e João estavam próximos ao palanque, mas estavam como espectadores. Cansados dos afazeres mais cedo, foram para suas casas, tomaram banho e retornaram com as esposas para a celebração.
Uma pequena pausa. Padre Marcelo iniciou seu sermão com as seguintes palavras:
- Povo amado de Deus. Povo querido desta cidade. Nesta linda noite, onde todas as atenções se voltam para este lindo momento. É inesquecível dizer o quanto depositamos nossa fé na Virgem Maria, a Senhora das Dores. Olhem só para ela, com esta espada de dor que lhe transpassa a alma, vendo seu amado Filho, Jesus Cristo, com esta cruz às costas, a caminho do calvário....
Já se passaram uns trinta minutos. Padre Marcelo falava as mais lindas palavras. Ele era considerado um dos melhores padres pregadores da diocese. Firme, a seu lado, o bispo ouvia fielmente e meditava as palavras proferidas por Padre Marcelo. O grupo de teatro, que encenaria um novo número naquele dia, já se encontrava posicionado e seus integrantes, atentos, meditavam aquelas lindas palavras. A multidão era numerosa. A pequena cidade dificilmente comportaria tanta gente que ali veio. Eram pessoas das cidades vizinhas, eram turistas de outras cidades e estados. Também estavam presentes turistas do estrangeiro. Uma delegação de pessoas vindas da Itália e de Portugal estava atenta às lindas frases ditas pelo pároco.
A procissão era totalmente acompanhada de velas. Todos, sem exceção, portavam uma vela. Este símbolo era uma tradição, porque em antepassados diziam ser a luz uma arma para combater as trevas do pecado, da maldição, da ignorância. O bispo estava com uma vela maior, pois era uma autoridade da igreja e por isso sua vela era maior. Padre Marcelo carregava uma vela um pouco menor, acessa durante todo o sermão, com uma proteção de papel duro, na qual fazia um anteparo para o fraco vento que se soprava da região nordeste. Era outono e a temperatura começava a cair.
Em um dado momento, Padre Marcelo, já cansado, convidou o senhor bispo para complementar aquilo que ele tinha falado. O bispo, muito feliz e impressionado com tanta gente, continuou a pregação. Ele pregava melhor que Marcelo. Era mais experiente, tinha mais anos de sacerdócio e também era professor licenciado de filosofia na faculdade.
Com suas lindas palavras, a comoção foi geral, porque ele ligou a família e complementou o pensamento de Marcelo. Ele, a cada momento, mais entusiasmado ficava, ao ponto de agitar mais os braços, as mãos quando dizia suas palavras voltadas para o amor, a fé, a caridade e seus conselhos. Chegava a bater com a vela em um apoio do púlpito e começava a tremer parte do palco. Mais feliz ficava ele e não se conteve em bater a vela no apoio, mas batia também o pé e entoava alguns trechos de certas músicas. O palco tremia e as pessoas batiam palmas, cantavam juntas e se libertavam com suas palavras.
Chico, que estava perto o palco, muito assustado com o intenso movimento do bispo, chegou perto de João e disse:
- João, fale com o Padre Marcelo que o palco está balançando muito. As tábuas estão meio carunchadas e os pregos poderão soltar. Caso isto aconteça, fará um enorme estrago. Imagine o púlpito caindo, poderá machucar o bispo.
João, mais depressa possível, em meio à multidão, foi andando rápido para perto do palco. Quando aproximou do canto direito do palco, percebeu que Chico estava falando sério. As tábuas estavam balançado, porque o bispo começou a pular e a dançar com uma música. As pessoas o acompanhavam, inclusive Padre Marcelo, que não deu nenhuma importância para João.
João acenava para Marcelo, porém era ignorado. Pensava João que Marcelo estava chateado com ele devido aquela discussão mais cedo. João acenava, fazia movimentos com a mão, batia palmas, gritava o nome de Marcelo, porém não escutava ou fingia não o ver. João escutou o barulho dos pregos soltando e uma pequena elevação do púlpito mais para a direita. Muita gente, muito barulho. Pensou João em ligar para o celular de Marcelo, mas lembrou que ele não estava de celular. A multidão estava mais eufórica. O grupo teatral também entrava na onda do bispo e mais barulho estava fazendo. João não sabia o que fazer. Tentou subir no palco, mas logo foi impedido pelos coroinhas que também pulavam e dançavam ao som da pregação do bispo. João ficou impedido e não tinha condições de avisar sobre o iminente desastre que poderia acontecer ali, em sua frente e ele sem condições de prever. Pensou consigo mesmo: Fiz o possível e ninguém me ouviu. Vou embora, porque não estou passando bem. Saindo dali, triste, sem aquele sorriso de costume, João adentrou no meio do povo e foi embora.
Mais um ou dois minutos, o bispo começa a cantar, bater a vela acesa no apoio do púlpito, a pular e levantar o microfone da mão esquerda para a multidão. Ouviu-se um forte estalo, a vela do bispo cai sobre o capim seco e este começa a pegar fogo. Muito assustado, o bispo dá um pulo e os pregos soltam a sustentação da base, vindo a cair sobre o pequeno fogo iniciado ali.
Com suas vestes grandes e secas, o fogo começa a pegar em suas roupas e o capim foi comparado a uma gasolina que se pega fogo. Imediatamente o bispo levanta, com as roupas em chamas, correndo para um lado e para o outro até que se atirou no meio das pessoas que ouviam suas palavras. Conseguiram apagar o incêndio das vestes do bispo, mas Padre Marcelo saiu correndo, enquanto o palco começava a arder em chamas.
Assustada, a multidão sai correndo enquanto o fogo destruía totalmente o local da cena.
Longe dali, João olhava assustado e desconsolado, porque fez o possível para dizer que o palco não estava seguro e que se o bispo fosse mais tranquilo e não pulasse tanto, as festividades teriam sido bem bonitas e mais reais.