A meninada espia o gado passar. A mulher se põe na janela e a imagem revela um corpo pela metade, como em foto três por quatro; um vaqueiro abre a cancela e Xandão sopra o berrante. A boiada vai em marcha, no compasso do berrante e no passo do vaqueiro. Onofre assume a guia, e João Velho o coice. Turíbio Soberbo não gostou da pessoa de João Velho na retaguarda. Pururuca e Dino também não! O projeto da fazenda de peixe-leiteiro teria que ficar para outra oportunidade. Guardou, no entanto, a pergunta de seu parceiro. ‘Vai criar baleia?’ E a resposta que deu, sem perceber: ‘Boto!’
— Não estou vendo Boto-cor-de-rosa! — disse João Velho, julgando que a conversa dos vaqueiros era sobre o reprodutor rufião, que Generoso resolvera mandar para o abate.
— O Boto está perto de boi Matreiro. Nunca gostou mesmo de vaca. Só cheira. O garanhão é que cobre e faz a cria.
— Aposta... objeto de aposta...o patrão recebeu gato por lebre.
— Teve tramoia: o candidato de Generoso ganhou jogando com carta suja. Onde já se viu atravessar jipe na ponte, para os eleitores do adversário, não chegarem a tempo de votar? A mando de quem, uma pessoa retirou o cabo da bobina e enfiou no bolso, para recolocar quando lhe conviesse?
— Não sei. Meu patrão não é disso. O jipe dele estava cedido para ajudar na campanha de Sebastião. Foi um parente de Durão quem aplicou esse golpe. Ainda assim, dava tempo para o eleitor puxar a pé. Eram só duas léguas.
— Àquela hora da tarde, dava. Dava pra chegar à noite, e assistir a apuração dos votos!
— Deixe de asneira, homem. A apuração é em Montes Claros.
— Que seja.
— Você votou no defunto para ajudar o patrão a ganhar uma aposta?
— Sou homem pra isso não. Tião morreu, antes da eleição, mas a Lei garante ao partido a substituição do registro.
— Sem mudar a cédula, nem a foto do ‘santinho?’
— E dava tempo?
— Deixa a prosa da eleição para depois, disse Onofre. Vaqueiro distraído, boi debandado.
Alexandre Guedes apertou o cavalo nas esporas, e foi pro coice da boiada. Tunico Oliveira apressou o passo e fez barreira na cabeceira da ponte.
— A ponte de madeira sobre o rio Verde é estrei. Pode machucar o gado.
— Ora Tunico, gado sabe se cuidar.
— Sabe. Gado sabe nadar.
A boiada atravessa o rio a nado. Adiante, Montes Claros é toda avistada. O gado passa em desfile na cidade. Vira a cara em continência para a mulher que tem um menino nos braços. Gente havia que fechava as portas com medo. E abria janelas para ver a boiada passar. O velho Maximiano estima: ‘Lota dois trens... ’ Veríssimo calcula por baixo: ‘Maximiano errou. Só lota um. Já reparou quantos vagões tem o trem?’
Distraído, o pavão de Walkiria vira pasta entre os casos dos bois. Ninguém cobra a conta. O gado passa. Passa boi. Passa boiada. Só saudade de boi não passa.
O berrante cadencia o passo
O boi faz a estrada
Evem a boiada do Gorutuba
Suando o ribeiro que bebeu
A pastagem vem na carne:
Uma tonelada em cada boi
Tira o pé do chão, Diamante!...
Afasta, Pimenta-de-nico...
Avante, Lampião!
Vai Corisco!...
Sai, Angico!...
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom cara pintada
Ê boi, ê boi...
Ê boi bom, pega a estrada
Vai Samburá...
Sai, Boto-cor-de-rosa...
Avante, Ouro fino...
Arreda, Caxangá!...
Abre a porteira, menino!
Que a boiada vai passar.
Bôooi!
— Com certeza, teu avô Generoso escreveu este poema, e já o fez musicado.
— Talvez sim. Talvez não. Mas... Muito tempo depois da morte dele, o poema ‘Saudade em Boi’ foi gravado por uma dupla sertaneja que não conseguiu romper as barreiras do anonimato. Se meu avô fosse vivo, provavelmente, não reconheceria a obra como sua. Mudaram aqui, mudaram ali. Mudaram até o título ‘Saudade em Boi’ para ‘Saudade de Boi’. Mesmo assim, convenhamos, depois do último verso, quando o berrante tocou, o Vaqueiro sentiu saudade de boi, e o boi sentiu saudade de vaqueiro.
— Dizem que ‘Saudade em boi’ é coisa que vem da obra de João Guimarães. Acaso, boi sente saudade?
— Boi sente. Chuvisco arrebentou a cerca e fugiu em disparada à procura de Onofre. Pelo sim, pelo não, deixemos de lado as intervenções. A boiada precisa chegar em Montes Claros.
Foi.
O boi de invernada rompeu estrada, no compasso da toada do vaqueiro. João Velho vai no coice, tocando o boi. Boi de invernada conta a ponte que passa; o poste, o pasto, tudo passa na vida do boi. “Puxa um aboio, menino, que pro animal acertar o passo...”
O berrante cadencia o passo. O boi faz estrada. “Ê boi, ê boi... ê boi bom cara pintada. Ê boi, ê boi... Ê boi bom, pega a estrada. Bôooi...”
A boiada segue rumo ao curral da ferrovia. Lança pedras com os cascos na calçada, e vai apressada para a morte. Sorte de boi. Pesado na balança cada quilo... E ainda se diz que é caro o quilo do boi. É caro, quando a carne é fraca. Também é caro o ovo da galinha. Ela põe dezenas deles e em paga, ganha o milho, e o abraço apertado do galo... O galo nica, beija e bica a cabeça da galinha. Isso é que é carinho! Depois ela vai ao ninho, chocar ovo. Cria a pintainhada e a defende do gavião. Medroso, o galo se esconde, como muitos maridos. Até Adão se escondeu atrás de Eva, depois que comeu do fruto proibido.
Devagar, rompeu a boiada, cortando a estrada velha de Juramento a Montes Claros, e naquele mesmo dia, embarcou lotando muitos vagões do trem. Duas malas de dinheiro o fazendeiro leva pra casa. Depois da paga, vaqueiros vão à farra, endinheirados, beber cachaça e vadiar com mulheres no cabaré de Montes Claros. Cláudio Manuel Constâncio, o Pururuca, foi preso numa batida policial de bordel. Turíbio Soberbo e Dinotério confabulam planos de criar peixe-leiteiro no rio São Francisco e tomam a estrada em transporte coletivo que os levaria àquela cidade ribeirinha.
Longe dali, a fazenda Campo Grande tornou-se apenas uma interrogação. Nada ficou no lugar, senão alguns recortes da história.
...cibório de nervos e memória
tensa, coberta de sangue...(Cid Teixeira)
Exangue, a viúva vê a imagem do marido na Pessoa de Fernando: ‘Fita com olhar langue’ a pastagem pálida da fazenda... Campo Grande se esvai e já não se vê tanto boi na manga como outrora. Parece que a aurora da vida entardeceu. Passa um ano, vem outro, e deixa vestes amarrotadas. Poeira na estrada, vincos e marcas profundas de tristeza e dor. Neste vaivém, a hora se perde no tempo. Soprada pelo vento, a estrela se apagou.
Corina chora.
As lembranças da fazenda Campo Grande ficaram gravadas nos anéis da memória de Corina: o casarão, o gado espalhado na pastagem, e a aurora chegando no leite mugido pelo vaqueiro na casinha de curral. Mineira de parto, gerada e crescida em Minas, quando morreu o marido, ela mudou-se para o Rio de Janeiro, com a filha Dulcineia, ainda nos cueiros. E Chanana, a índia tomada por adoção, logo que a mãe morreu de parto. A viúva do fazendeiro arrumou as malas de couro cru, pôs em cada bruaca boa medida de goma, farinha e carne seca. Vendeu tudo que tinha: porco, galo, pavão, peru e galinhas; cavalos, ovinos e todo o rebanho de gado vacum. Vendeu também por pouco dinheiro a coleção de livros que Generoso tinha, e a fazenda que cobria grande parte do chão banhado pelos rios Juramento e Saracura. Escondeu na matula o apurado, e tomou condução em Montes Claros para o Rio de Janeiro. Copacabana ainda era menina, e Corina sonhou verde. Foi morar na Tijuca, que lhe remonta lembranças de Campo Grande. Saudosas lembranças também tinha do coco que Zé cantava a Mirabela e de todas as coisas belas de Minas. Minas tem poeta, boa cachaça e muita gente famosa nascida naquele chão. Tem Drummond, João Guimarães, Tião Carreiro, e Zé Coco do Riachão. Foi em Minas que Generoso conquistou Corina, a glória que Vitória da Conquista da Bahia, não lhe ofereceu. Ela nunca esqueceu quando o marido perdeu a vida, numa encenação de campeio. Ninguém acreditou na versão de que o baiano sofreu acidente em um toco de aroeira. Aquilo foi rixa com confrontantes. Sumia galinha da fazenda e as frutas desapareciam da chácara. Também o leite sumia. A vaca que dormia de úbere cheio, acordava vazia.
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Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim."
Imagens de outrem.