A boiada avança estrada afora, gerais a dentro.
Parece assombração! Perto do cemitério, bateu ventania forte. Redemoinho, do nada. Poeira subiu. Lavou peões com o pó da estrada. Ninguém via nada. Só o tropel dos cascos. A boiada é que guiava. Xandão voltou meia légua, mas não achou nem rastro. Corisco deve ter fugido pegando a barriga da serra. Se caiu na voçoroca, já é morto... Bicho de lá não sai vivo. Lampião quis fazer o mesmo e ficou machucado.
— Que dizer ao patrão: Corisco debandou. Não teve jeito. Lampião tá machucado...
— Na voçoroca do meio, já morreu muito vivente. Tem arma de caçador lá dentro, e ossada de bicho. Três vaqueiros desapareceram.
— Onça vai comer Corisco. Se ele não cair na voçoroca fica ainda mais fácil para a onça.
— Dizem que caçador segue a caça, e quando cuida, já despencou pra dentro. Tem muita água. Ninguém vê o fundo.
— Deve ter caça no grotão da voçoroca.
— Tem caça e tem onça. Onde tem caça tem caçador.
— Não quero passar nem perto.
— Saia da minha frente, Pururuca. Homem que é homem tem medo de onça não. Onça é que tem que ter medo de homem!... Quando toco boiada só quero ouvir conversa de boi — disse Nhô Velho.
Turíbio olhou atravessado. Dino e Capistrano pensaram o mesmo: ‘Nhô bateu na cangalha pra o burro entender’. Não viam nada errado em conversar. Boi sabe andar sozinho. Tunico Oliveira adiantou meio quarto de légua. Precisava abrir a cancela e bloquear o mata-burro.
A boiada chega berrando. Parece se lembrando das coisas de Campo Grande. A pastagem recuperada. Imensa. Brotada de novo.
Meio baiano, meio mineiro, Justino Batista Constant Generoso não espera que o galo cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. O poeta e fazendeiro começa sua história onde termina a lenda ou termina a lenda onde começa sua história. Ele viveu quarenta anos em Minas. E com o mineiro, aprendeu a ser prudente, e manso. Desconfiado, no entanto. Calado, esperto. Cauteloso. Mineiro é sossegado. Vai comendo devagar o mingau quente pelas beiradas. Pelas estradas da vida, tudo passa devagar. O trem, a cidade, a multidão de mineiros... Pela janela do trem, vê-se um rosto pálido no esquife, correndo, passando ligeiro nos trilhos sob o brilho do sol norte mineiro. Plantado no campo santo, o poeta espera tanto a ressurreição dos mortos, quanto a consagração da poesia.
— Tarde patrão!...
— Como foi a marcha até aqui? — disse Generoso olhando o gado se dispersando na manga.
— Perdemos um boi!
— Qual?
— Corisco. Saiu tirando fogo de pedra com os cascos. Ligeiro que nem um raio. Xandão foi capaz. Quase. Lampião tá machucado.
— Amanhã pesaremos a boiada na cidade. Corisco depois vem no cabresto, salgar brasa de angico.
— E Lampião?
— Vou chamar o açougueiro.
— Né por nada não, patrão. Tem cigano arranchado aqui perto.
— Em minhas terras?
— Quase que quase. Parte dentro, parte fora. Bem na divisa.
— Pois mande Turíbio Soberbo, Pururuca, e João Velho com meu recado à ciganada. Se quiser ir, também pode. Senão, descanse.
— É de meu gosto. Vou.
— Pois dê meia-hora pra cigano arribar. Prometa fogo. E faça. Faça fogo cinco minutos depois do prazo. Só não atinja mulher e menino. A pesagem do gado fica pra depois.
José Lino foi. Não era obrigado, mas foi. Talvez para garantir o pai, já chegado à idade. Melhor não ter ido. Talvez sim, talvez não.
Vaqueiros confabulam:
— Tem cigana bonita que lê mão.
— E você acredita nisso, cabeça de vento? Cigano é treiteiro. Vai querer negociar pasto pra ganhar tempo e sair de arribada, sem pagar, concluiu Onofre.
— Quero ir também, disse Pururuca, sentindo do vento, sobre sua cabeça, o sopro.
— Pois pegue uma arma e venha. Quem não sabe cozinhar, serve pelo menos para atiçar o fogo.
Foram. Minutos depois, cinco pares de vaqueiros bem armados abordam o acampamento cigano.
— Vieram trocar cavalos, cajão? Indagou o cigano Felisberto, guardando o violino num saco de tecido listrado.
— Não quero baldroca. Quero que saiam das terras do patrão. Dou meia hora de prazo.
José Lino se antecipa:
— Quero ler a mão.
— Entre na tenda — disse a cigana — apontando para uma porta formada por duas tiras de lona.
E, à meia luz. Reicka faz movimentos como se ensaiasse a dança do ventre. Passa a mão de cima abaixo no freguês. Nem pula as partes vergonhosas. Faz por gosto... E recomenda no final da sessão: ‘Volte amanhã. Traga sete velas coloridas: verde, azul, lilás, branca, rosa, vermelha, e amarela. É preciso nova consulta e mais reza forte. Hoje não cabe mais. Traga também uma maçã vermelha; pau de canela; taça de vidro transparente; 21 cravinhos da índia;7 colheres de mel;7 moedas; um pedacinho de papel com seu nome escrito sete vezes, que é pra Santa Sara abençoar com a graça da prosperidade o gajão e sua família.”
O cliente quis saber.
— Tem que pagar de novo?
— Só mais um agrado, gajão!
--- E as sete moedas.
--- As moedas são para a Santa Sara favorecer o cajão.
Parece tentação do capiroto. A cigana Sara Reicka Madalena era bonita, mais da conta. Tinha olhos amendoados, negros cabelos, nariz afilado e uma pele morena coberta por longo vestido. Na cabeça, um lenço fino; e pulseiras coloridas nos braços produziam nela a silhueta de uma deusa indiana. Insinuantes seios tocavam as vestes, quase furando o azul-acetinado da seda. E na dança, a cintura fina se movia sobre largo quadril, como se seguisse o ritmo de alguma música cigana. Pausava a dança. E as mãos compridas de Reicka deslizavam com suavidade por quase todo o corpo do cliente. José Lino não se conteve. Elogiou. Fez galanteio e roçou a mão em Reicka. O marido dela, escondido atrás do acortinado, via tudo. Viu José Lino palpitante. Assanhado. E com um salto felino, o gajo apresentou-se, pronto pra fazer uma desgraça. Enfiou a mão canhota na cintura e ergueu um punhal. José Lino sacou a arma. Falou alto. Alterado. Desafiou. João Velho com um revólver em punho, meteu o pé. Derrubou a tenda.
— Calma, João! Ainda nem dei meu recado direito!
Onofre apontou arma para um velho sisudo que tinha cara de rei.
— Dou meia-hora e não quero ver nem cisco de cigano aqui! A ‘orde’ era do patrão. Agora é minha. E dele. Mais dele que minha, e desses que estão comigo. Meia hora. Dou meia hora. Se passar disso, num sobra nem menino, pra contar a história...
Pururuca quase ensaiou uma arte. Puxou o revólver e atirou pra cima.
— Dê cá sua arma, Pururuca! Ainda não tá na hora de fazer fogo. Disse Onofre, peitando um cigano de uns vintes anos. Forte que nem Sansão.
— Dou não!
— Pois dê pra João Velho!
— Pra João Velho eu dou.
— Agora, monte e avise ao patrão que vai ter fogo. Carece mandar mais ninguém não. Eu sozinho dou conta. Vamos precisar só de pá e enxada.
— Sangue pra mim não é novidade — disse o vaqueiro que atendia pelo nome de Soberbo.
— Você não está sozinho, Onofre!
João Velho não se sentiu ofendido. Quis dizer que também garantia sua parte.
— E eu vim sozinho? Só quero que esperem o sinal. O primeiro eu derrubo. Depois, todo mundo solta os marimbondos.
Não era de duvidar que os vaqueiros estivessem preparados para o confronto. E, ao sinal do velho Reich, sai a primeira leva de ciganos, conduzindo as mulheres e crianças. Outra caravana também pôs os pés na estrada. Só homem novo e robusto. Mais de vinte. Ficou um gordo de meia-idade, pastoreando dois grisalhos. Dentre eles, um velho manco. O manco saiu por último, olhou com desdém para Onofre. Retirou o lenço do pescoço, deu três nós e cuspiu para trás. Nem viu o punhal, penetrar-lhe o peito. Ficou teso. Ensanguentado. Esticado no chão.
— Pra quê fez isso, homem? Não precisava!
— Esse miserável tava com as horas contadas pra morrer. Não aguentava mais um chouto. Só aliviei o sofrimento dele.
— Eles vão voltar.
— Nem não. Voltavam se não tivesse acontecido nada. O velho manco era a isca...
— Estratagema de cigano para medir nossa paciência — disse, sabiamente, João Velho.
— Era essa gema mesmo. Voltavam depois com a desculpa de vir buscar o velho. E aí, arranchavam de novo, adiando a peleja para cansar o patrão — conclui Onofre.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
Parece assombração! Perto do cemitério, bateu ventania forte. Redemoinho, do nada. Poeira subiu. Lavou peões com o pó da estrada. Ninguém via nada. Só o tropel dos cascos. A boiada é que guiava. Xandão voltou meia légua, mas não achou nem rastro. Corisco deve ter fugido pegando a barriga da serra. Se caiu na voçoroca, já é morto... Bicho de lá não sai vivo. Lampião quis fazer o mesmo e ficou machucado.
— Que dizer ao patrão: Corisco debandou. Não teve jeito. Lampião tá machucado...
— Na voçoroca do meio, já morreu muito vivente. Tem arma de caçador lá dentro, e ossada de bicho. Três vaqueiros desapareceram.
— Onça vai comer Corisco. Se ele não cair na voçoroca fica ainda mais fácil para a onça.
— Dizem que caçador segue a caça, e quando cuida, já despencou pra dentro. Tem muita água. Ninguém vê o fundo.
— Deve ter caça no grotão da voçoroca.
— Tem caça e tem onça. Onde tem caça tem caçador.
— Não quero passar nem perto.
— Saia da minha frente, Pururuca. Homem que é homem tem medo de onça não. Onça é que tem que ter medo de homem!... Quando toco boiada só quero ouvir conversa de boi — disse Nhô Velho.
Turíbio olhou atravessado. Dino e Capistrano pensaram o mesmo: ‘Nhô bateu na cangalha pra o burro entender’. Não viam nada errado em conversar. Boi sabe andar sozinho. Tunico Oliveira adiantou meio quarto de légua. Precisava abrir a cancela e bloquear o mata-burro.
A boiada chega berrando. Parece se lembrando das coisas de Campo Grande. A pastagem recuperada. Imensa. Brotada de novo.
Meio baiano, meio mineiro, Justino Batista Constant Generoso não espera que o galo cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. O poeta e fazendeiro começa sua história onde termina a lenda ou termina a lenda onde começa sua história. Ele viveu quarenta anos em Minas. E com o mineiro, aprendeu a ser prudente, e manso. Desconfiado, no entanto. Calado, esperto. Cauteloso. Mineiro é sossegado. Vai comendo devagar o mingau quente pelas beiradas. Pelas estradas da vida, tudo passa devagar. O trem, a cidade, a multidão de mineiros... Pela janela do trem, vê-se um rosto pálido no esquife, correndo, passando ligeiro nos trilhos sob o brilho do sol norte mineiro. Plantado no campo santo, o poeta espera tanto a ressurreição dos mortos, quanto a consagração da poesia.
— Tarde patrão!...
— Como foi a marcha até aqui? — disse Generoso olhando o gado se dispersando na manga.
— Perdemos um boi!
— Qual?
— Corisco. Saiu tirando fogo de pedra com os cascos. Ligeiro que nem um raio. Xandão foi capaz. Quase. Lampião tá machucado.
— Amanhã pesaremos a boiada na cidade. Corisco depois vem no cabresto, salgar brasa de angico.
— E Lampião?
— Vou chamar o açougueiro.
— Né por nada não, patrão. Tem cigano arranchado aqui perto.
— Em minhas terras?
— Quase que quase. Parte dentro, parte fora. Bem na divisa.
— Pois mande Turíbio Soberbo, Pururuca, e João Velho com meu recado à ciganada. Se quiser ir, também pode. Senão, descanse.
— É de meu gosto. Vou.
— Pois dê meia-hora pra cigano arribar. Prometa fogo. E faça. Faça fogo cinco minutos depois do prazo. Só não atinja mulher e menino. A pesagem do gado fica pra depois.
José Lino foi. Não era obrigado, mas foi. Talvez para garantir o pai, já chegado à idade. Melhor não ter ido. Talvez sim, talvez não.
Vaqueiros confabulam:
— Tem cigana bonita que lê mão.
— E você acredita nisso, cabeça de vento? Cigano é treiteiro. Vai querer negociar pasto pra ganhar tempo e sair de arribada, sem pagar, concluiu Onofre.
— Quero ir também, disse Pururuca, sentindo do vento, sobre sua cabeça, o sopro.
— Pois pegue uma arma e venha. Quem não sabe cozinhar, serve pelo menos para atiçar o fogo.
Foram. Minutos depois, cinco pares de vaqueiros bem armados abordam o acampamento cigano.
— Vieram trocar cavalos, cajão? Indagou o cigano Felisberto, guardando o violino num saco de tecido listrado.
— Não quero baldroca. Quero que saiam das terras do patrão. Dou meia hora de prazo.
José Lino se antecipa:
— Quero ler a mão.
— Entre na tenda — disse a cigana — apontando para uma porta formada por duas tiras de lona.
E, à meia luz. Reicka faz movimentos como se ensaiasse a dança do ventre. Passa a mão de cima abaixo no freguês. Nem pula as partes vergonhosas. Faz por gosto... E recomenda no final da sessão: ‘Volte amanhã. Traga sete velas coloridas: verde, azul, lilás, branca, rosa, vermelha, e amarela. É preciso nova consulta e mais reza forte. Hoje não cabe mais. Traga também uma maçã vermelha; pau de canela; taça de vidro transparente; 21 cravinhos da índia;7 colheres de mel;7 moedas; um pedacinho de papel com seu nome escrito sete vezes, que é pra Santa Sara abençoar com a graça da prosperidade o gajão e sua família.”
O cliente quis saber.
— Tem que pagar de novo?
— Só mais um agrado, gajão!
--- E as sete moedas.
--- As moedas são para a Santa Sara favorecer o cajão.
Parece tentação do capiroto. A cigana Sara Reicka Madalena era bonita, mais da conta. Tinha olhos amendoados, negros cabelos, nariz afilado e uma pele morena coberta por longo vestido. Na cabeça, um lenço fino; e pulseiras coloridas nos braços produziam nela a silhueta de uma deusa indiana. Insinuantes seios tocavam as vestes, quase furando o azul-acetinado da seda. E na dança, a cintura fina se movia sobre largo quadril, como se seguisse o ritmo de alguma música cigana. Pausava a dança. E as mãos compridas de Reicka deslizavam com suavidade por quase todo o corpo do cliente. José Lino não se conteve. Elogiou. Fez galanteio e roçou a mão em Reicka. O marido dela, escondido atrás do acortinado, via tudo. Viu José Lino palpitante. Assanhado. E com um salto felino, o gajo apresentou-se, pronto pra fazer uma desgraça. Enfiou a mão canhota na cintura e ergueu um punhal. José Lino sacou a arma. Falou alto. Alterado. Desafiou. João Velho com um revólver em punho, meteu o pé. Derrubou a tenda.
— Calma, João! Ainda nem dei meu recado direito!
Onofre apontou arma para um velho sisudo que tinha cara de rei.
— Dou meia-hora e não quero ver nem cisco de cigano aqui! A ‘orde’ era do patrão. Agora é minha. E dele. Mais dele que minha, e desses que estão comigo. Meia hora. Dou meia hora. Se passar disso, num sobra nem menino, pra contar a história...
Pururuca quase ensaiou uma arte. Puxou o revólver e atirou pra cima.
— Dê cá sua arma, Pururuca! Ainda não tá na hora de fazer fogo. Disse Onofre, peitando um cigano de uns vintes anos. Forte que nem Sansão.
— Dou não!
— Pois dê pra João Velho!
— Pra João Velho eu dou.
— Agora, monte e avise ao patrão que vai ter fogo. Carece mandar mais ninguém não. Eu sozinho dou conta. Vamos precisar só de pá e enxada.
— Sangue pra mim não é novidade — disse o vaqueiro que atendia pelo nome de Soberbo.
— Você não está sozinho, Onofre!
João Velho não se sentiu ofendido. Quis dizer que também garantia sua parte.
— E eu vim sozinho? Só quero que esperem o sinal. O primeiro eu derrubo. Depois, todo mundo solta os marimbondos.
Não era de duvidar que os vaqueiros estivessem preparados para o confronto. E, ao sinal do velho Reich, sai a primeira leva de ciganos, conduzindo as mulheres e crianças. Outra caravana também pôs os pés na estrada. Só homem novo e robusto. Mais de vinte. Ficou um gordo de meia-idade, pastoreando dois grisalhos. Dentre eles, um velho manco. O manco saiu por último, olhou com desdém para Onofre. Retirou o lenço do pescoço, deu três nós e cuspiu para trás. Nem viu o punhal, penetrar-lhe o peito. Ficou teso. Ensanguentado. Esticado no chão.
— Pra quê fez isso, homem? Não precisava!
— Esse miserável tava com as horas contadas pra morrer. Não aguentava mais um chouto. Só aliviei o sofrimento dele.
— Eles vão voltar.
— Nem não. Voltavam se não tivesse acontecido nada. O velho manco era a isca...
— Estratagema de cigano para medir nossa paciência — disse, sabiamente, João Velho.
— Era essa gema mesmo. Voltavam depois com a desculpa de vir buscar o velho. E aí, arranchavam de novo, adiando a peleja para cansar o patrão — conclui Onofre.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."