Generoso via as imagens em sua mente: Pai Luís com enxada às costas, seguido por mais de meia dúzia de enxadeiros, assobiando, e cantando toada. Quase todos filho de Pai Luís ô homem de sangue bom. A filharada é boa de serviço como o pai. O trabalho deles rende...
A fazenda Campo Grande sempre teve fartura. Boa produção de arroz, feijão, milho e rapadura. Também farinha, sobrava do consumo. O excedente da produção ia pra feira de Montes Claros. Meeiros negociam sua parte com o patrão, mas não são obrigados a lhe venderem a safra. Se o preço na cidade for melhor, vendem lá.
— Coronel Generoso não tem usura. Tem palavra.
— Valente e teimoso, briga com a água e com o fogo. Manso e bravo é um escravo dos amigos e um gravo no pé do adversário.
— Quem ganha sem trabalhar, é inimigo do patrão, disse João Velho, jogando água na fervura: vaqueiro deve conversar com boi...
A boiada segue o passo, no compasso do aboio de Xandão.
— O padrão vai pesar boi.
— O povo conta que Generoso arrancou um cabedal nas taperas mau assombradas da senzala.
— Vamos mudar de assunto. ‘Tamo’ perto do cemitério das Sete Passagens. — Dizem que a mesma pessoa, só pode passar por aqui sete vezes. Na oitava, morre! Cai duro no chão, nem que saúde esteja igual a um coco.
— Tem medo de alma, Pururuca?
— Pesadelo com Zé Pilão. Tenho.
— Reze o credo. Encomende missa para alma dele.
Pururuca arrepiou. E se benzeu três vezes.
— É verdade que na Bíblia está escrito que quem com um ferro fere, com o mesmo será ferido?
— É verdade. Mas isso não quer dizer, ferir com ferro o corpo de uma pessoa. Às vezes sim, às vezes não. As pessoas ferem outras sem usarem arma. Até matam.
— De tiro?
— Pode ser que sim. Pode ser que não. Às vezes, matam sem matar, quando dizem: ‘ Você morreu pra mim’. Matam pela via mais cruel: a indiferença. E fazem de seu coração um cemitério.
— Não gosto de cemitério. Quando morria uma pessoa, minha mãe derramava a água de casa. Dizia que a alma se banhava nos potes.
— Que alma besta é essa! Com tanta água nos rios, vai procurar pote pra se banhar?...
— Pode ser que não, mas tô ouvindo barulho de água...
— É a nascente. Estamos chegando nela, tonto!
As águas de Sete Passagens tinham sede. Embora chovesse na redondeza, ali a natureza estava feia. A tropa bebeu. Pururuca encheu as cabaças, na nascente semimorta. Pouca água. Outrora, o jorro corria entre as montanhas lavando o chão. Sabe-se lá até onde. Agora morre ali pertinho, sumindo nalguma voçoroca. Até Campo Grande que nasceu sobre o manancial das águas do Juramento e Saracura, perdeu pasto. Mas água ainda tem. A pastagem é pouca. Judiada. Muito rastro e pouco pasto. O recurso foi alugar pasto pra descansar as mangas.
— Passou um gambá por aqui...
— É sinal que tem onça por perto. A defesa do gambá é o mijo fedido.
João Velho põe o cavalo quase a galope. Aproxima-se de Pururuca e dá uma ordem que estrondou como um trovão.
— Chega as esporas no vazio do cavalo., molenga! Que prosa besta é essa? Vaqueiro que presta só vê boi.
A repreensão ao outro, caiu como uma pedra. Disfarçadamente, Japuaçu levou a mão à cintura. Mas ele não era doido de enfrentar Nhô Velho, o homem é ligeiro que nem gato. Só de pensar em furar o outro, Japuaçu já se sentia duro, esticado no chão. E se lembrava de ter visto a tenda dos ciganos voar aos ares, com um pontapé que João Velho dera, empunhando um revólver. E riu, lembrando-se da cena: Pururuca tremia que só vara verde. “Melhor pedir as contas, quando chegasse em Campo Grande” — pensou.
— Quero ir para a guia — disse ele — recordando-se da conversa no alpendre: ‘A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro. ’
— Pois vá. Vá fazer figura de vaqueiro na frente da boiada. Se descuidar, vira pasta no casco do boi.
João Velho bate com o chapéu no traseiro da montaria.
— Assuntem o comportamento de cada boi. Prestem atenção nos movimentos de cabeça.
A boiada se agita.
— Não estou gostando dos modos de Corisco.
O guia toca berrante. Outro vaqueiro entoa cantiga de boi:
“Florete... Velho Jordão!...Tira o pé do chão Diamante.
Boi Bonito!.... avante, Lampião! Arreda Corisco!...”
— Isso é toada pra boi-carreiro.
— Zé Coco canta assim.
— E por acaso Zé Coco é vaqueiro?
— Não sei. Mas quando escuta a voz é de Zé Coco, boi obedece.
— Zé Coco não é vaqueiro. Nunca foi.
— Aquele é tudo que quiser na vida. Nasceu desse jeito. Tudo que ele se botar a fazer, faz, e faz bem feito.
— E porque não está aqui?
— Ele está fazendo carro-de-boi na fazenda. Tem tempo pra ser vaqueiro não!
— Pois cuide do tempo. Lá vem a peste montada numa mula sem cabeça!
— Quem?
— O redemoinho.
— C’us diacho parece que o capiroto vem dentro!
O vento soprou. Levantou o chapéu de João Congo e foi tombando...tombado.
— Deixe o chapéu ir embora, animal sem rumo! E cuide dos bois. Não fique nem muito longe nem muito perto. O chifre do boi é perigoso, mas o casco também mata. Compreendeu?
A ofensa foi grande demais. Japuaçu não suportava ser chamado de João Congo. E torceu o bigode e se aproximou de Onofre. — ‘Agora furo um homem. ’ Mas se sentiu obrigado a retroceder. Onofre pressentiu a intenção do outro vaqueiro, e levantou a camisa, exibindo um longo e pontiagudo punhal. Aos olhos de João Congo, a arma já estava suja de sangue.
— Olha aqui, paspalho — disse Japuaçu — não conte mais comigo pra nada.
O punhal de Onofre furou o vento. Japuaçu chegara o animal nas esporas, e com uma upa, o cavalo já estava a dois metros distante do outro. Japuaçu guardou a faca e dali em diante, o relho comeu no lombo do burro: espora, chibata e galope até o boteco de Adão em Juramento.
— O amigo vem correndo de uma onça ou de assombração?
Os olhos de Japuaçu estalados como ovo na frigideira, revelavam que o vaqueiro tinha visto coisa mais assustadora que uma onça ou qualquer assombração ou seja, sua própria vida espetada no punhal de Onofre.
— Bote uma pinga pra mim.
— Tem dinheiro?
— Tenho uma peixeira. Demorou demais. Bote duas agora! E foi colocando a peixeira sobre o balcão.
— Duas?
— Agora, três. Se demorar é quatro, cinco, seis...
O dono do bar serviu duas cachaças em copos tipo americano.
— Complete o copo!
Tomou a cachaça de um fôlego só.
— A outra é sua! — disse Japuaçu com a peixeira em punho.
— Não bebo pinga!
— Ou bebe a pinga ou bebo seu sangue.
— Não bebo sem tira-gosto.
— Pois pegue pra mim também.
O comerciante abaixou-se no balcão e já levantou apontando uma garrucha de dois canos apontada para a cabeça do valentão.
— Aqui seu tira-gosto!
Armou o cão da garrucha. Até o vento se soprasse o gatilho, a arma disparava.
— Beba a outra cachaça. Beba duas e pague três. A terceira que vai pagar é pelo desaforo.
Japuaçu pagou a conta e saiu a pé.
Adão puxou o gatilho e as nádegas de Japuaçu ficaram salpicadas de furinhos. A espingarda estava carregada com sal grosso...
— Vai deixar o cavalo aí, idiota?
— O dono, se quiser, mande buscar.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
A fazenda Campo Grande sempre teve fartura. Boa produção de arroz, feijão, milho e rapadura. Também farinha, sobrava do consumo. O excedente da produção ia pra feira de Montes Claros. Meeiros negociam sua parte com o patrão, mas não são obrigados a lhe venderem a safra. Se o preço na cidade for melhor, vendem lá.
— Coronel Generoso não tem usura. Tem palavra.
— Valente e teimoso, briga com a água e com o fogo. Manso e bravo é um escravo dos amigos e um gravo no pé do adversário.
— Quem ganha sem trabalhar, é inimigo do patrão, disse João Velho, jogando água na fervura: vaqueiro deve conversar com boi...
A boiada segue o passo, no compasso do aboio de Xandão.
— O padrão vai pesar boi.
— O povo conta que Generoso arrancou um cabedal nas taperas mau assombradas da senzala.
— Vamos mudar de assunto. ‘Tamo’ perto do cemitério das Sete Passagens. — Dizem que a mesma pessoa, só pode passar por aqui sete vezes. Na oitava, morre! Cai duro no chão, nem que saúde esteja igual a um coco.
— Tem medo de alma, Pururuca?
— Pesadelo com Zé Pilão. Tenho.
— Reze o credo. Encomende missa para alma dele.
Pururuca arrepiou. E se benzeu três vezes.
— É verdade que na Bíblia está escrito que quem com um ferro fere, com o mesmo será ferido?
— É verdade. Mas isso não quer dizer, ferir com ferro o corpo de uma pessoa. Às vezes sim, às vezes não. As pessoas ferem outras sem usarem arma. Até matam.
— De tiro?
— Pode ser que sim. Pode ser que não. Às vezes, matam sem matar, quando dizem: ‘ Você morreu pra mim’. Matam pela via mais cruel: a indiferença. E fazem de seu coração um cemitério.
— Não gosto de cemitério. Quando morria uma pessoa, minha mãe derramava a água de casa. Dizia que a alma se banhava nos potes.
— Que alma besta é essa! Com tanta água nos rios, vai procurar pote pra se banhar?...
— Pode ser que não, mas tô ouvindo barulho de água...
— É a nascente. Estamos chegando nela, tonto!
As águas de Sete Passagens tinham sede. Embora chovesse na redondeza, ali a natureza estava feia. A tropa bebeu. Pururuca encheu as cabaças, na nascente semimorta. Pouca água. Outrora, o jorro corria entre as montanhas lavando o chão. Sabe-se lá até onde. Agora morre ali pertinho, sumindo nalguma voçoroca. Até Campo Grande que nasceu sobre o manancial das águas do Juramento e Saracura, perdeu pasto. Mas água ainda tem. A pastagem é pouca. Judiada. Muito rastro e pouco pasto. O recurso foi alugar pasto pra descansar as mangas.
— Passou um gambá por aqui...
— É sinal que tem onça por perto. A defesa do gambá é o mijo fedido.
João Velho põe o cavalo quase a galope. Aproxima-se de Pururuca e dá uma ordem que estrondou como um trovão.
— Chega as esporas no vazio do cavalo., molenga! Que prosa besta é essa? Vaqueiro que presta só vê boi.
A repreensão ao outro, caiu como uma pedra. Disfarçadamente, Japuaçu levou a mão à cintura. Mas ele não era doido de enfrentar Nhô Velho, o homem é ligeiro que nem gato. Só de pensar em furar o outro, Japuaçu já se sentia duro, esticado no chão. E se lembrava de ter visto a tenda dos ciganos voar aos ares, com um pontapé que João Velho dera, empunhando um revólver. E riu, lembrando-se da cena: Pururuca tremia que só vara verde. “Melhor pedir as contas, quando chegasse em Campo Grande” — pensou.
— Quero ir para a guia — disse ele — recordando-se da conversa no alpendre: ‘A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro. ’
— Pois vá. Vá fazer figura de vaqueiro na frente da boiada. Se descuidar, vira pasta no casco do boi.
João Velho bate com o chapéu no traseiro da montaria.
— Assuntem o comportamento de cada boi. Prestem atenção nos movimentos de cabeça.
A boiada se agita.
— Não estou gostando dos modos de Corisco.
O guia toca berrante. Outro vaqueiro entoa cantiga de boi:
“Florete... Velho Jordão!...Tira o pé do chão Diamante.
Boi Bonito!.... avante, Lampião! Arreda Corisco!...”
— Isso é toada pra boi-carreiro.
— Zé Coco canta assim.
— E por acaso Zé Coco é vaqueiro?
— Não sei. Mas quando escuta a voz é de Zé Coco, boi obedece.
— Zé Coco não é vaqueiro. Nunca foi.
— Aquele é tudo que quiser na vida. Nasceu desse jeito. Tudo que ele se botar a fazer, faz, e faz bem feito.
— E porque não está aqui?
— Ele está fazendo carro-de-boi na fazenda. Tem tempo pra ser vaqueiro não!
— Pois cuide do tempo. Lá vem a peste montada numa mula sem cabeça!
— Quem?
— O redemoinho.
— C’us diacho parece que o capiroto vem dentro!
O vento soprou. Levantou o chapéu de João Congo e foi tombando...tombado.
— Deixe o chapéu ir embora, animal sem rumo! E cuide dos bois. Não fique nem muito longe nem muito perto. O chifre do boi é perigoso, mas o casco também mata. Compreendeu?
A ofensa foi grande demais. Japuaçu não suportava ser chamado de João Congo. E torceu o bigode e se aproximou de Onofre. — ‘Agora furo um homem. ’ Mas se sentiu obrigado a retroceder. Onofre pressentiu a intenção do outro vaqueiro, e levantou a camisa, exibindo um longo e pontiagudo punhal. Aos olhos de João Congo, a arma já estava suja de sangue.
— Olha aqui, paspalho — disse Japuaçu — não conte mais comigo pra nada.
O punhal de Onofre furou o vento. Japuaçu chegara o animal nas esporas, e com uma upa, o cavalo já estava a dois metros distante do outro. Japuaçu guardou a faca e dali em diante, o relho comeu no lombo do burro: espora, chibata e galope até o boteco de Adão em Juramento.
— O amigo vem correndo de uma onça ou de assombração?
Os olhos de Japuaçu estalados como ovo na frigideira, revelavam que o vaqueiro tinha visto coisa mais assustadora que uma onça ou qualquer assombração ou seja, sua própria vida espetada no punhal de Onofre.
— Bote uma pinga pra mim.
— Tem dinheiro?
— Tenho uma peixeira. Demorou demais. Bote duas agora! E foi colocando a peixeira sobre o balcão.
— Duas?
— Agora, três. Se demorar é quatro, cinco, seis...
O dono do bar serviu duas cachaças em copos tipo americano.
— Complete o copo!
Tomou a cachaça de um fôlego só.
— A outra é sua! — disse Japuaçu com a peixeira em punho.
— Não bebo pinga!
— Ou bebe a pinga ou bebo seu sangue.
— Não bebo sem tira-gosto.
— Pois pegue pra mim também.
O comerciante abaixou-se no balcão e já levantou apontando uma garrucha de dois canos apontada para a cabeça do valentão.
— Aqui seu tira-gosto!
Armou o cão da garrucha. Até o vento se soprasse o gatilho, a arma disparava.
— Beba a outra cachaça. Beba duas e pague três. A terceira que vai pagar é pelo desaforo.
Japuaçu pagou a conta e saiu a pé.
Adão puxou o gatilho e as nádegas de Japuaçu ficaram salpicadas de furinhos. A espingarda estava carregada com sal grosso...
— Vai deixar o cavalo aí, idiota?
— O dono, se quiser, mande buscar.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."