O sepultamento
Muitas das vezes é difícil saber quem vai morrer, ou melhor, escolher o dia, a hora de morrer. Porém o mais complicado foi para o Senhor Mário, o coveiro de um cemitério.
Era sábado. O dia estava muito quente. Várias nuvens cobriam o azul celeste e, de vez em quando, uma pequena garoa de chuva cobria o céu, dando uma pequena impressão de que o dia se fecharia em chuvas. Um vento suave soprava o rosto daquele velho coveiro, que aguardava para mais um sepultamento, pois na semana era o quinto daquela árdua jornada. Sepultar, enterrar, jogar terra por cima do caixão, colocar o caixão em gavetas de mausoléu, pintar, construir, limpar e outros afazeres de cemitério era tarefa exclusiva dele.
Por volta das dezessete horas, sairá o enterro do Marcos, um novo defunto que falecera em acidente de carro, no dia anterior, à noite. Marcos era um vereador da cidade. Muito querido entre o povo e várias homenagens estavam sendo feitas para ele, que era muito influente na região.
Mário, com seu uniforme de coveiro, com o emblema da Prefeitura Municipal, fizera a abertura da cova. Muita terra foi jogada para fora. O local da sepultura era de ladeira e ele tinha o cuidado para que a enxurrada não levasse parte da terra, porque seria um desconforto muito grande, tanto para ele, quanto pela sua reputação. No ano passado, Mário recebeu uma homenagem por ser o melhor funcionário público municipal da região. Esta homenagem rendeu-lhe uma bela entrevista no canal de televisão do município vizinho.
Impaciente, Mário andava de um lado para o outro. O tempo estava passando e nada da saída do enterro. O céu, a cada instante, ia-se cobrindo de preto, não por luto da morte de Marcos, mas a frente fria prevista pelo instituto de previsão do tempo formava-se depressa e a qualquer momento poderia cair uma grande tempestade. Caso isto ocorresse, ele teria de colocar a terra novamente para fora e pegar outra, amassando muito barro e comprometendo o sepultamento do corpo.
Não teve escolha. Com seu bonezinho na mão, foi-se ele até o velório municipal, que ficava a uns mil e quinhentos metros de distância. Sairia do cemitério, passaria por uma pracinha cimentada, com flores ornamentais, muitas rosas, alguns bancos de cimento, algumas árvores de pinheiro e algumas orquídeas ali plantadas ou nascidas pelo tempo. O piso era firme, mas algumas rachaduras no caminho sinalizavam que precisa de alguma reforma. O defunto Marcos havia prometido que arrumaria verba com o deputado Paschoal, em Brasília, para dar uma grande reforma naquela praça, chamada e apelidada de Pracinha do Cemitério. Alguns postes de iluminação estavam pelo caminho e Mário dizia que não serviam para nada. Sempre ele tinha que comprar as lâmpadas e colocar ali, pois os filhos de uma moradora da região gostavam de quebrá-las atirando pedras com os botoques. Sempre Mário tinha que fazer esta manutenção.
Meio cabisbaixo e com os passos rápidos, ele chegou até o velório. Na porta havia uma varanda muito grande. Pessoas de vários tipos, homens com ou sem ternos, mulheres de vestidos longos, de cores preta, cinza, marrom, liras e outras se misturavam com as coroas de flores, com o perfume exalado pelos cravos, pelas rosas, pelas margaridas e outras qualidades de flores que Mário jamais conhecia. Na porta, bem visível, estava um pedestal e nele haviam um livro de presença e uma caneta e, neste livro, várias assinaturas de pessoas que ali passaram e que estavam chegando. Um senhor calvo, de terno preto, com um emblema no bolso, perto do coração, estava assinando o tal livro e com uma enorme esperteza entregou a caneta para que Mário assinasse também. Mário recusou, mostrando para o homem calvo, de terno preto, que estava com as mãos sujas de terra de cemitério e este, meio assustado, afastou-se repentinamente.
Lá dentro, com muita pompa, estavam os mais ilustres vereadores, amigos e companheiros do defunto, suas esposas, o prefeito e família, uns dois ou três deputados e um representante do governador. Dentro do caixão, estava aquela figura boníssima de Marcos. A sua feição era tão bonita, que ele parecia estar sorrindo, ou melhor, parecia estar muito feliz. Vestia-se terno preto, com rosas em suas mãos. No fundo, estava um painel de dez metros, com uma figura de uma bíblia, uma luz, uma mensagem que dizia: Voltarás ao pó, pois do pó tu vieste.
Mário, lendo aquela mensagem, pois era muito curioso e não perdia nada. Gostava muito de ler e lia em média uns vinte livros por ano. Lia jornais e revistas e foi até convidado para fazer palestra sobre leitura para os alunos da escola. Ele pensou na mensagem e disse consigo mesmo: Hoje, não será pó, mas sim uma quantidade de terra molhada e barro puro.
Do lado direito do corpo, estava a viúva, acompanhada dos dois filhos do casal. Do outro lado, algumas personalidades locais, os familiares do defunto e familiares da viúva. Mário pensou em cumprimentá-los, mas não teve coragem porque suas mãos estavam sujas de terra e não era um bom momento.
Um pouco mais à frente, um altar foi formado e o padre estava celebrando a missa. O coral entoava várias músicas e Mário lembrou o quanto a morte é difícil de ser entendida. Para ele, dia a pós dia, era o seu serviço. Colocar o caixão e jogar terra. Cuidar o cemitério e zelar por aqueles que foram grandes personalidades. Tudo se resumia na mensagem que estava no fundo: Do pó ao pó.
Lá no fundo, do outro lado do corpo, Mário viu o representante da funerária. Estava de terno e gravata, de cabelos penteados, de óculos escuros e portava uma agenda. Mário não sabia se era para contar as pessoas que estavam lá, se era para fazer o apanhado do lanche servido para os que ali foram ou se era de praxe o uso da agenda.
Passando um a um, Mário chegou até o representante da funerária e o chamou em particular:
- A que horas vai sair o enterro?
- Não sei, já está na hora. Devem falar o prefeito, o presidente da Câmara e mais uma turma. Você já viu, enterro de político, sempre sobra gente para falar.
- Pedro, vê se apressa, porque o tempo está para chuva e virá uma tempestade. A terra pode sair para fora e vai fazer muito barro. Se for enterrar à noite, com chuva, vai ser muito difícil.
Saindo e passando por todos, Mário lia atentamente as mensagens das coroas enviadas para o velório. Tinham de Brasília, de Belo Horizonte, de amigos de escola, da faculdade que Marcos dava aula de Direito, enfim, muitas eram as mensagens ali escritas que ele simplesmente parou no tempo. Esqueceu da cova aberta e quando se deu por si, as pessoas já estavam saindo, porque a missa já terminara e era o momento das despedidas.
Saiu correndo para preparar o terreno. O vento soprava forte o seu rosto, que vinha do lado sul. Olhou repentinamente e via os clarões de relâmpagos e fortes trovões expandiam seus sons aterrorizando quem ali passasse.
Correndo, até chegar ao cemitério, quando olhou para trás, estava vindo o enterro, mas estava tão rápido que já o alcançara. Os acompanhantes estavam correndo e o carrinho que conduzia o corpo estava a toda velocidade.
Mário, naquela altura do campeonato, iria passar por fortes emoções em sepultar Marcos. A chuva estava começando a cair. Era noite, porque a cerimônia demorou mais de duas horas. Ele estava sozinho e os primeiros pingos de chuva já caiam com muita intensidade.
Assim que Mário chegou perto da cova, pegando a enxada, a pá, deparou com o Antônio, seu amigo de infância. Antônio era açougueiro por profissão. Estava de férias e foi ao velório. Como estava bastante embriagado, mas jamais fazia discurso, ria, contava anedotas, simplesmente ficava calado e disse a Mário.
- Amigo, eu estou tonto, bebi bastante pinga com vinho. Você está sozinho nesta parada. Então vou lhe ajudar, porque vai chover muito e sem enterrar não pode deixar o defunto. O povo vai correr quando começar a tempestade. Somente restaremos eu e você. Nós dois juntos poderemos fazer o enterro. Está certo?
Mediante àquela situação, Mário não teve outra escolha em concordar com o amigo. Em seu íntimo, Antônio era gente boa. Muito trabalhador, mas estava tonto e trabalhar com pessoas embriagadas não era o forte de Mário. Naquele momento, não restava mais nada a não ser balançar a cabeça e dizer:
- Falou, amigo, vamos juntos nesta.
Assim que terminou de falar, o carrinho conduzindo o corpo chegou. Com rapidez, Mário amarrou a corda para descê-lo à sepultura. Já começava a chover forte. As pessoas que conduziram o carrinho, em um instante, desapareceram todas, pois não queriam molhar ou estavam com medo. Somente restaram Mário e Antônio.
Quando Mário começou a descer o caixão, Antônio se desequilibrou e desceu para sepultura, escorregando sobre a terra molhada, já em estado de barro. Sobre Antônio, desceu o caixão pesado de Marcos.
Antônio gritava por socorro e somente Mário estava ali. Ele, sozinho, fazendo força para tirar Antônio de dentro da sepultura e tirar o caixão de Marcos de cima dele. Foram alguns momentos de agonia, mas com muitas dificuldades, Mário conseguiu e foi imediatamente levar Antônio para o hospital.
No outro dia, bem cedo, Mário retornou ao cemitério para jogar a terra no caixão e o povo comentou que Mário enterrou um e levou o outro para o hospital.