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O LEITEIRO

       Juventino era um pequeno proprietário, que, no início da década de 70, vivia com sua família, esposa e cinco filhos, sendo dois moços na faixa de dezesseis a dezoito anos, que trabalhavam na roça e três crianças, duas meninas e um menino, que estudavam na cidade no período da manhã.
     Seu sítio era bem arrumado, com uma casa de madeira grande com uma varanda na frente; na porta da cozinha tinha uma área coberta com tanque para lavar roupa com água encanada que vinha de uma nascente; próximo, tinha um forno de barro e, ao redor da casa, formava-se um pomar com variadas espécies de frutas. Um pouco distante da casa, ficava um curral para tratar o gado e tirar leite, próximo um mangueirão de porcos.
   Cultivava um pouco de café, plantava cereais e criava também um gadinho. Do leite que produzia, Juventino tirava para o sustento da casa e a maior parte vendia na cidade, entregando todos os dias de porta em porta como era o costume da época. Pai e filhos cuidavam do sítio e, no tempo que sobrava, trabalhavam na fazenda vizinha para aumentar a renda familiar.
       Levantava bem cedo, tirava o leite e, quando era por volta das 6h, saía com sua carrocinha, com latão de leite e um canecão para fazer a entrega, aproveitando também para levar as crianças à escola.
     As crianças se encolhiam sentadas no fundo da carroça, iam dormindo devido ao horário, nem viam o trajeto. Juventino, sentado no banco, fumando um cigarro de palha, conduzia o animal, pensando na vida, no preço do leite, nas inúmeras despesas mensais e no trabalho que dava para cuidar de tudo.
      Logo a uns duzentos metros da casa, tinha uma ponte de madeira sobre um regato de águas cristalinas formado pela nascente acima, que corria entre pés de embaúbas, samambaias e umas moitas de bambu, formando um pequeno lago, de  água tão limpa que, quando o dia já estava bem claro, de cima da carroça viam-se peixinhos nadando.
     O leiteiro tinha uma freguesia certa, que pagava por mês; por ser um homem criado ali no sítio, era muito conhecido e estimado na cidade, e isso garantia que seu leite, frutas e alguns legumes tivessem sempre comprador. Entre seus fregueses, quem ele mais se orgulhava de ter era Dona Gertrudes, a Diretora do Grupo Escolar.
     Toda manhã, deixava as crianças na escola e, em seguida, começava a entrega do leite, sempre pela casa da diretora que era próxima à escola. Numa segunda-feira, como de costume, bateu palmas e a empregada saiu para atendê-lo.
       --- Bom dia, Jandira!
     --- Bom dia, seu Juventino! A hora que o senhor acabar a entrega do leite, passa lá na escola que dona Gertrudes quer conversar com o senhor.
    Terminado o trabalho, Juventino parou a carrocinha em frente à escola, amarrou o cavalo no tronco de uma árvore e entrou para falar com a diretora.
     O Grupo Escolar ficava numa esquina, um prédio de dois andares, afastado da rua uns trinta metros. O leiteiro seguiu por uma calçada que saía do portão de alambrado e ia até a porta do prédio,; havia canteiros de flores dos dois lados da calçada. Juventino ia pensando: ”Que será que a diretora podia querer com ele? Será por causa dos meus meninos?”
       Entrando no prédio, à esquerda, ficava a secretaria, e em seguida, uma escada de dois lances: subia um e fazia uma curva, mais um para chegar ao andar de cima; do lado do pé da escada, ficava a mesa do inspetor de alunos e, ao lado, a sala da diretora.
     Juventino chegou com o chapéu na mão, encostado ao peito e disse ao senhor que estava sentado numa cadeira atrás da mesa, lendo o diário oficial,
        --- Bom dia. Dona Gertudes chamô eu  pra conversá..
        --- Bom dia. O senhor pode entrar que ela está esperando.
    Juventino chegou na porta da sala da diretora, tímido, cabeça baixa.
        --- Bom dia dona Gertudes. A sinhora mandô mi chamá?
        --- Bom dia. Entre, seu Juventino, feche a porta, por favor.
     --- Seu Juventino, aconteceu uma coisa muito estranha. Ontem a hora que Jandira foi ferver o leite, despejou-o na leiteira e dentro havia um peixinho. O senhor pode explicar isso?
       --- O leiteiro levou um choque como se tivesse recebido uma descarga elétrica; ficou vermelho, a voz falhou e com muito custo, conseguiu resmungar umas palavras.
         --- NossSinhora! É memo? Um pexinho?
         --- Sim, um peixinho!
     Juventino olhava a diretora. Era uma mulher bonita, de aproximadamente quarenta anos, morena clara com uns cabelos negros, lisos até os ombros, elegantemente vestida, sentada atrás da mesa; num canto da sala, a bandeira do Brasil, no outro, a do Estado de São Paulo. Esperando uma explicação, que ele não tinha.
      --- Será qui a vaca foi bebê água no rio e inguliu o pexinho? Num pode sê, né?
      Ele torcia o chapéu apertando contra o peito, olhava a porta, a janela,um armário de madeira que tinha na sala, procurando um lugar para se esconder daquele olhar pesado sobre ele.
        Dona Gertrudes o conhecia há muito tempo, sabia que era homem honrado e que lutava para sustentar sua família, três filhos pequenos que estudavam no grupo mais dois mocinhos que o ajudavam no trabalho do sítio. Sentiu pena dele, ao vê-lo tão envergonhado daquele jeito.
    Então, levantou-se da mesa, deu alguns passos, parou próximo ao leiteiro e disse com voz calma, mas firme:
       --- Seu Juventino, eu conheço o senhor faz tempo, sei que é trabalhador, também, conheço seus filhos que estudam comigo e são crianças educadas; estou disposta a esquecer tudo se o senhor prometer que nunca mais isso acontecerá.
     A diretora estava tão perto que ele podia sentir seu perfume. Juventino não teve coragem de levantar a cabeça, seu rosto queimava de vergonha. Juntando toda suas forças, disse com voz sumida:
        --- Prometo, dona Gertudes! Prometo por essa luz que tá alumiano!
         E olhou pela janela, por cima de um ipê roxo todo florido, o sol que ia alto.
         --- Então está bem, o senhor pode ir, Seu Juventino.
         --- Deus li pagui, dona Gertudes!
         Juventino saiu da sala quase correndo, sem olhar para os lados; tinha pressa de pegar sua carroça e sair logo da cidade; ia pela rua pensando no que havia acontecido. As pessoas que ele encontrava, cumprimentavam, ele mal respondia, parecia que todos olhavam para ele sabendo de sua culpa.
       Depois desse acontecimento, o leiteiro nunca mais colocou água no leite, e, toda semana, no sábado, quando ia entregar o leite, levava um presentinho para a diretora, uma abobrinha verde fresca, outro dia uma dúzia de ovos caipira ou um frango gordo.
       Dizia para Jandira, a empregada da diretora:
   --- Um agradinho que minha patroa mando pa dona Gertudes.
 
João Batista Stabile
Enviado por João Batista Stabile em 06/03/2018
Reeditado em 07/04/2021
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