Um morto na estrada.
O sono ainda não tinha finalizado, quando Sérgio acordou meio atordoado, espantado, sem noção do tempo, sem pensar no que estava fazendo, acordando de susto, acordando de pesadelo com a notícia que acabara de chegar: Seu amigo Manoel, amigo de infância, compadre, amigo de dança, de farra, de frequentar bailes e casas de danças, seu conselheiro nas horas de sofrimento e de angústia, seu nobre e grande amigo chegou ao final da vida. Um acidente automobilístico levou aquela figura eterna, cheia de brilho, de vida, de esperança e calorosa.
Sérgio, porém, ainda atordoado com o sono mal dormido, ainda variando, pois fazia menos de uma hora que ele pôs sua cabeça no travesseiro e iniciou um belo sono. Estava cansado, porque fez uma viagem para o exterior. Foram mais de dezoito horas a bordo de um avião e o tempo não estava favorável ao voo, passando por várias turbulências, peso no estômago e o fuso horário entre o Brasil e a China. Não podia voltar para o velório, pois ficaria pelo menos quase dois anos ali fazendo estágio em uma fábrica e terminando o seu mestrado de engenharia. Era difícil, mas teria que enfrentar o que ele se chamou de azar de não poder velar seu melhor amigo.
Sentado à cama, com uma forte emoção, Sérgio relembrou de todos os momentos passados juntos: Ele e Manoel, a dupla do barulho, a dupla infernal na cidade natal deles. Os momentos de conhecimento, os momentos das briguinhas de criança, o sentimento fraternal entre eles e as conquistas profissionais e amorosas. Sérgio estava arrasado. Não queria acreditar no que estava acontecendo. Era mentira, pensava consigo o tempo todo.
A vida é uma grande caixa de surpresas e nestas lendárias surpresas é que acontece o imprevisto. Quem diria que aquele homem forte, que nunca pensou ir a consultas e detestava hospital estivesse ali, dentro de uma urna mortuária, vestido de um terno preto, de cabelos penteados, de barba feita, com um terço na mão, rodeado de flores dentro de seu caixão, frio, gelado, uma madeira, ao modo de dizer, sem vida, sem dar as boas risadas e jamais poder abrir os olhos. Sim, tinha acabado, tinha entregado a sua linda e abençoada vida ao Criador. Era muito católico, frequentava a missa toda semana, participava de todos os atos da Igreja e jamais falou qualquer tipo de blasfêmia, estivesse sem vida.
Uma, duas, três... Várias lágrimas correram de seus olhos e o choro não vinha. Fazia força para chorar, mas estava em sua mente as boas lembranças, a boa vida e a eterna amizade daquela dupla.
Em um impulso tão forte, pegou o telefone para ligar para a família, mas ele estava em outro país. Não era o Brasil. Os meios de comunicação eram muitas vezes bloqueados para informações exteriores. Não conseguiu ligar, nem mesmo sua internet no telefone funcionava. O seu computador estava ainda bloqueado pelo país por um questão de segurança nacional. Ele era estrangeiro e estava ali a trabalho e a estudo. Chorou, relembrou dos bons e maus tempos vividos juntos e o próprio tempo faria com que ele esquecesse de seu amigo, mas jamais o tiraria de sua mente.
Passou a noite matutando e não acreditando na notícia.
O tempo passou. Sérgio estava preocupado com o estágio e o longo curso que tinha pela frente. Pensava consigo: Assim que retornar ao Brasil vou fazer uma visita a sua família, transmitir os meus sentimentos e me desculpar por não ter jeito de ir a seu velório.
Decorreram-se meses e talvez alguns anos, e Sérgio permanecia entre China, Japão, Brasil e Estados Unidos. Passou um bom tempo sem visitar sua terra natal. Os contados eram feitos por telefone, e-mail e outros meios de comunicação quando estavam disponíveis. O seu quadro de trabalho era muito extenso e mal tinha tempo suficiente para outras atividades.
Em uma determinada data, Sérgio finalmente tem um tempo suficiente e vem passar alguns dias de descanso em sua terra natal.
Quando lá chegou, foi dizendo que não esquecera o amigo. Vou, imediatamente, fazer uma visita a seus familiares e me desculpar por não ter vindo. A distância é muito grande e o tempo é maior ainda.
Calçou um tênis, vestiu uma bermuda jeans de cor azul e uma camisa de cor branca. Saiu andando depressa, pois o tempo era seu inimigo e queria estar lá, com os familiares de Manoel, o mais rápido possível. No caminho, Sérgio lembrou de uma expressão dita por Manoel:
- Quando eu morrer, mesmo você estando longe, e você não vir a meu enterro, vou aparecer a você, debaixo de uma árvore, e acertar as contas. Devo puxar seus pés, talvez lhe dar um forte beliscão e também um tapa. É mesmo o que dizer da personagem Chiquinha, do programa humorístico do Chaves.
Caminhava depressa, justamente perto da árvore, Sérgio levou um susto que o deixou inerte. Seus olhos pararam e sua respiração estava a baixa pressão. Justamente, debaixo daquela árvore, vestido todo de branco, uma figura lhe chamava a atenção. Não era ninguém além de Manoel.
Sérgio ficou assustado ao ver que Manoel lhe chamara pelo nome e dizendo:
- Que felicidade você estar aqui. É grande o tempo que não nos vimos. Você nem sequer veio no momento mais difícil de minha vida. Fiquei muito tempo internado no hospital. Nem mesmo um telegrama ou uma palavra de um grande amigo para animar-me. Senti frio, meus pés estavam gelados, fiquei somente em uma posição. As flores eram a minha companhia. Meus braços não mexiam e fiquei sem falar com alguém...
Desta forma, Manoel caminhava-se para o perto de Sérgio e passos rápidos e dizendo estar feliz.
Sérgio lembrou-se do dia do velório de seu amigo e pensou:
- “Não dei minhas notícias para ele; ficou parado, sem mexer e em uma posição...”
- Ele veio me cobrar porque não fui a seu enterro. Deve estar nervoso. Tenho que me prevenir. Quando eu brigava com ele, eu não bati, sempre apanhava. Tenho que me precaver.
- Oh trem atoa, o coisa do outro mundo, o fantasma da estrada. Saia de minha frente que eu quero passar.
- Não fui a seu enterro porque não estava no Brasil. Soube da notícia e não tive jeito de vir. Saia de minha frente.
Do outro lado, Manoel continuava a dizer as mesmas coisas e abrindo os braços veio ao encontro de Sérgio para dar-lhe um abraço.
Com muito medo, Sérgio, vendo uma pedra que se encontrava no chão, a pegou e com sua mão firme na pedra, disse:
- Já lhe falei para ir embora deste mundo. Você morreu e está bem morto, mortinho como esta pedra que vou lhe mandar, caso você venha até aqui.
- Eu não fui a seu enterro porque estava longe, muito longe. Estava na China...
Chorando como uma criança, Sérgio não conseguia expressar-se como deveria, mas lembrou daquele sentimento muito forte que tinha por Manoel. As lembranças se passaram várias vezes em sua mente naquele instante.
Manoel, aproveitando a desconcentração de Sérgio, foi aproximando devagarinho e dizendo que foi mentira. Ele esteve muito doente, ficou vários dias internado no hospital, ficou em estado de coma, muito mal e o médico já o tinha dado como morto. Porém, seu corpo reagiu devagarinho e ele pôde sobreviver. O tempo foi longo, mas sua saúde e sua fé lhe transmitiram esta dádiva tão bela que é a vida.
Meio confuso, Sérgio ainda duvidava das palavras de seu amigo e insistia constantemente:
- Não se aproxime de mim. Vou lhe mandar esta pedra. Você não pertence mais a este mundo. Você está morto e seu fantasma está ai, na minha frente, para atordoar-me, deixando-me confuso, com medo, com minha consciência pesada por não cumprir a missão de ir a seu velório, jogar as flores em sua sepultura e jogar o último punhado de terra sobre seu caixão.
- Sérgio, isto vai demorar muito. Estou vivo, muito vivo, vivo para ir até você e lhe dar um forte abraço. Você é o meu melhor amigo e jamais vou esquecer de sua responsabilidade de meu amigo. Você, como já disse, é meu melhor amigo e grande amigo, jamais a gente se esquece.
- Saia do meu caminho. Vou lhe jogar esta pedra. Você não é mais deste mundo. Saia do meu caminho, porque preciso passar para fazer minha visita de conforto a seus familiares.
Muito confuso, Sérgio não queria acreditar naquilo que estava vendo. Os seus instintos diziam que Manoel estava morto. Aquela visão poderia ser fruto de sua mente, poderia ser também o fantasma do amigo que ali estava para dizer-lhe algo, ou talvez para se despedir pela última vez. Não se entendia mais nada. Chorava feito criança. Sua desconfiança naquela situação era vã, não sabia ao certo o que era. Pensava consigo mesmo se corria para abraçar o amigo, ou se corria para voltar até sua casa e contar o fato a seus familiares, ou saia correndo para ir à casa do amigo para o cumprimento.
- Venha até aqui, não tenha medo. Eu não estou morto. Estou bem vivo. No mês passado fui até a sua casa. Li seu último livro que você escreveu. Fiquei feliz por ter mencionado o meu nome, mas gostaria de ler como se eu estivesse vivo, porém você não sabia. São coisas que passam. Venha, eu estou aqui, ou melhor, vou até você. Você não está acreditando, talvez esteja semelhante a São Tomé: Tem que tocar para crer...
- Por favor, não insista. Palavras, expressões do outro mundo não é a minha área, não estão em meu vocábulo. Deverá ir direto para onde você estiver. Não sei se será o céu, inferno ou purgatório.
- Lembra daquela vez que paquerou com a esposa do Pedro, da Padaria da Esquina?
- Você terá muito pecado para contar. Lembra de ter comido o frango no restaurante do Chico e saiu sem pagar. Até hoje ele não sabe que foi você. Lembra de ter ido nadar na piscina e sua sunga saiu, ficando completamente nu até que todos saíram do clube para você ir embora...
- Saia do meu caminho, se você não sair vou jogar esta pedra em você e já lhe despachar para o céu, inferno ou por onde for. Saia, mais uma vez, saia do meu caminho.
- Eu estou vivo, eu não morri. Pode perguntar a qualquer pessoa. Você precisa me ouvir e me tocar, porque sou eu, de carne e osso.
- Que conversa fiada, Manoel. Gente que morts não volta, nem mesmo para pedir missa ou fazer quaisquer tipos de recomendações. Você já morreu. Eu não acredito que está vivo. Mesmo que a vaca tussa, eu jamais acreditarei em você.
Após este diálogo, no lugar em que os dois se encontravam, a uma distância de mais ou menos uns trinta metros, debaixo de um árvore, acomodada em um fresca sombra, pois já se passavam das três horas da tarde, um boi de cor vermelha, com chifres longos, ruminando parte da pastagem que comera no decorrer do dia, em um pequeno instante, engasgou e começou a tossir. Foram quatro tosses e um espirro.
- Eu não lhe disse, exclamava o amigo, ainda defunto, com ares de alegria para provar que estava vivo, muito vivo que raciocinava as palavras e o que mais queria dizer para seu amigo. Os dias intermináveis no hospital, os remédios tomados, a recuperação e nada mais. Comemore, estou vivo....
- O boi tossiu, porém não foi a vaca. Então não acredito. Fuja e se você insistir no meu caminho, a padra vai voar diretamente na sua cabeça. Olha que minha pontaria é muito boa. Lembra que fui campeão de arremesso de pedras por quatro vezes, ao passo que você jamais acertou sequer uma latinha.
Ameaçando jogar a pedra, caso ele insistisse em cruzar o seu caminho, os dois ouviram uma voz distante, onde dizia:
- Calma Sérgio, calma, Sérgio. Ponha esta pedra no chão. Você não está falando com nenhum morto. O Manoel está vivo, muito vivo. Ele sofreu o acidente de automóvel, esteve entre a vida e a morte. Recuperou, está bom. Pela distância que você se encontrava, foi difícil lhe avisar. Aqui na roça é muito difícil a comunicação. Eu e minha esposa ficamos atordoados com fato. Ele é o nosso único filho. Não tivemos tempo suficiente para poder lhe dizer. Vá, dê um abraço no Manoel, porque ele está vivo, já recuperado pelo trauma e todos os dias ele fala em você. Com estas palavras, Vítor, o pai de Manoel, dizia em voz alta para que Sérgio não fizesse nada.
Meio desconfiado, um pouco trêmulo, Sérgio aproximou-se de Manoel lhe deu um forte abraço.
As lágrimas saíram dos olhos deles, porque a grande amizade entre os dois era o verdadeiro motivo para estarem ali, juntos, um perto do outro, com imensa alegria e com aquele carinho recíproco entre eles.
- Ainda bem que você está vivo, Manoel. Pensei que nunca mais iria vê-lo.
- Estou contente por acreditar em mim, respondia Manoel.
- Você teve a experiência de morrer. Então como é do outro lado da vida?
- Está certo. Agora sou eu quem vai jogar-lhe a pedra. Você vai ver a experiência e depois me contará, respondia Manoel em tom de brincadeira.
Naquele momento, os dois começaram a conversar e saíram abraçados. O caso espalhou pela cidade e sempre há uma piadinha por algum habitante da cidade.