O SUSTO DO DEFUNTO.
Era ainda o final de dia. Uma tarde meio triste, porque, nuvens escuras cobriam a cidade e anunciavam uma ligeira tempestade. Ventos sopravam fortes, mesmo com alguns raios solares misturando no colo da tarde. Pássaros voavam em bando procurando o refúgio, pois, certamente sabiam que a noite seria difícil, com muita chuva, muito vento e até, quem sabe, algumas pedras de granizo, pois o calor estava muito intenso no decorrer do dia.
Na casa de Dona Maria e seu esposo Pedro, um conceituado cirurgião dentista e ela, uma grande professora de literatura, ambos permaneciam tristes, não por causa da tarde triste que se aproximava, mas pela perda de um grande amigo, que falecera no dia anterior e fora sepultado na manhã deste dia, onde a tarde estava triste. Sr. Júlio, era o nome dele. Ele era um alto funcionário público federal aposentado, de estatura alta, mediando aproximadamente dois metros, pesava mais ou menos uns cem quilos. Usava barba cerrada, um bigode de cor branca, pois, ali, estavam seus anos de vida: oitenta anos bem vividos. Era uma pessoa muito comunicativa. Usava sua bengala para locomover-se. Era alegre, mesmo sabendo de sua doença, mas uma pessoa muito religiosa. Quando ia à missa, geralmente todos os domingos, ela gostava de fazer uma leitura. Cantava, também, no coral da igreja e sempre auxiliava a administradora paroquial em suas dificuldades. Era formado em Direito, com mestrado na área penal. Foi professor em uma faculdade, antes de se aposentar e chegou a ser procurador do Federal, onde se aposentou. Assim que se aposentou, ele veio morar na cidade, sua terra Natal e sempre era bem visto para com a cidade.
Conta-se que ele era um grande contador de “Causos”, historiador por natureza, escritor, poeta e às vezes fazia algumas músicas. Porém, uma de suas dádivas era contar os causos, porque tinha uma enorme facilidade de comunicação, pois sua profissão lhe tornava mais livre e sentia-se com total segurança.
Maria e Pedro eram os seus melhores amigos. O pai de Maria foi seu colega de escola e os dois viveram uma das melhores infâncias do época. Jogavam bola na rua, iam juntos para o colégio, namoravam a mesma namorada, brincavam a todo instante e por incrível que pareça, quando o pai de Maria se casou, Júlio foi padrinho de casamento. Mesmo estando longe no trabalho, nunca os dois se separaram e viram constituir família, sempre perto do outro. Maria, por sua vez, tinha um sentimento de amor muito grande por ele. Todos os dias, com chuva, com sol, com vento ou com frio, ela ia à casa dele. Ajudava no que fosse preciso. Até chegou a lavar roupas dele, quando sua enfermidade se alastrou. Dormiu no hospital, acompanhou-lhe junto aos médicos, acompanhava-o nas pequenas caminhadas, na calçada de sua casa. Era companhia nas missas, enfim, era considerada por ele uma segunda filha. Ele só tinha uma filha, mas esta veio a falecer ainda nova, vítima da queda de um avião e seu corpo foi totalmente queimado e irreconhecível. Era a vida, dizia ele, mas não se pode contrariar a vontade de Deus Altíssimo. Quis Ele assim, então será.
Em seus causos, dizia ele que quando morresse viria puxar o pé de Maria, porque Maria era uma de suas felicidades. Gostava muito dela e a considerava sua filha. Sempre sorrindo, com seu olhar atento e escondido em um óculos que não saia de seu rosto, com voz baixa e uma sorriso no rosto dizia:
- Quando eu morrer, assim que for enterrado, ao escurecer e com o som de uma rajada de vento, entrarei em sua casa, sem que você me perceba, porque o espírito é invisível, não tem matéria, nem mesmo sentido, atravessarei as paredes, mesmo elas estando construídas e revestidas de chumbo. Sentarei aos pés de sua cama. Agradecerei por tudo que fez por mim e sei que fará também por minha viúva. Não poderei abraçar-lhe, porque a lei da vida não permitirá. O seu pensamento estará junto ao meu pensamento e como forma de agradecimento, vou puxar os seus dois pés. Sentirá, então, que minhas mãos estão geladas, semelhantes a um iceberg de grandes proporções...”
Maria, ainda triste com a perda daquele ente muito querido por ela, meditou o texto sempre dito por Júlio, mas pensava ser brincadeira dele e dizia para Pedro, seu esposo, que isto não era realidade. Era uma estranha sensação e que não havia razão para se preocupar:
- Como uma pessoa poderá puxar meus pés, poderá fazer-me medo, sendo que somente fiz o bem para ele.
- Será que ele cumprirá sua promessa, porque ao chegar no julgamento final, aos pés do Altíssimo, será cobrado por tudo o que prometera e não cumprira.
- Estou com muito medo. Ele poderá cumprir sua promessa...
Assim, com o silêncio que se pairava no quarto, somente o som das rajadas de vento, Maria ficou matutando o tempo todo. Ouviu a chuva caindo, os relâmpagos da tempestade, o som dos automóveis subindo e descendo a rua em que morava, o som do telefone que chamava a todo instante, ela não se conteve. Seus olhos bambeavam de sono, mas a sua preocupação ou talvez a tristeza que carregava consigo pela perda de seu grande amigo, deixava-lhe atordoada. Não conseguia dormir, nem mesmo com auxílio de alguns remédios de sono. Forçava-se, mas o seu ego era muito forte e a todo momento a imagem de Júlio estava perto dela, junto a seu coração.
Pedro, um bom marido, fazia sua parte de consolo a sua querida esposa. Não falava-lhe muito, apenas acariciava os cabelos, o rosto e lhe dizia:
- Querida, você sempre foi ótima para o Júlio. Ele sempre gostou de você. Não fique triste, porque quem morreu jamais voltou. Lá é muito bom. Ele vai encontrar com a filha dele. Ficará muito feliz e esquecerá que você existe. Tente dormir, pois você está muito cansada e triste. Amanhã será um novo dia, uma nova vida, um novo sonho. Feche os olhos, ouça o barulho da chuva. Vou apagar as luzes e deixarei somente a luz o abajur acesa. Ela ficará longe e fará um pouco de escuro no quarto. Desta forma, você poderá dormir...
- Não, dizia Maria... Eu estou com muito medo. Há poucos dias li um livro de um escritor francês. Em um de seus capítulos, o mocinho voltou para buscar a mocinha. Estou com muito medo...
Por volta das duas horas, com o silêncio profundo na rua, no quarto e na casa, Maria começou a fechar os olhos, alternadamente. Seu coração batia forte, seu semblante estava cansado. Seus olhos foram cerrando aos poucos e um mini sono chegou. O mesmo acontecera com Pedro. Já cansado, mas também com um pouco de cisma e com medo, começou a adormecer.
Por incrível que pareça, uma rajada de vento forte encontrou quarto adentro. Era tão forte que as cortinas foram empurradas para frente. Uns passos foram ouvidos por Pedro e Maria. Não eram passos fortes, mas passos leves, vagarosos, como se alguém estivesse caminhando ao redor da cama. Um gemido foi ouvido. Não era som de miado de gato, nem mesmo piado de coruja, mas algo muito estranho que estava envolvendo o casal. Um vento frio foi tomando o corpo do casal ao mesmo tempo. Não somente um, mas vários puxados nos pés dos dois foram sentidos e uma voz, meio rouca, mas bastante feliz dizia:
- Estou muito bem. Encontrei a minha filha. Obrigado pela ajuda que me deram. Vou em paz e cuide de minha viúva.
Acordados e trêmulos, viram uma luz desaparecer pela janela, ainda com as cortinas empurradas pelo vento, sumindo no horizonte.
Não deu outra. Saíram os dois, de pijama, na chuva fria e no vento forte da madrugada, ficaram ali até ao amanhecer.