1027-CANELA DE JACARÉ-Causo de raizeira/curandeira
Todos os moradores da vila acreditavam no poder de cura das ervas, infusões, garrafadas, chás e aplicações de ervas que Dona Euflosina fazia, obtendo resultados quase miraculosos.
Eu disse Todos? Enganei-me. Havia um que não acreditava. E foi justamente com o descrente que as coisas tinham de acontecer.
Pedrão Correia, o dono da única venda da vila, que já andara por meio mundo como boiadeiro e tropeiro antes de se estabelecer, achava que sabia o bastante para afirmar que só acreditava no que via.
— Ara, gente, deixa de besteira! Essas ervas da dona Frósina num vale de nada. Ceis são é bobo em acreditar nessas coisa.
E debochava da velha que andava pelos campos e subia pela morraria da região, colhendo ervas, frutinhas silvestres e raízes para suas manipulações, dizendo alto para quem quisesse ouvir:
— Beba desses chazinhos quem quiser, eu é que não vou beber, não...!
Como diz o ditado, não se deve dizer que jamais dessa água beberei. Sempre haverá uma ocasião para ser comprovada a sabedoria dos ditos populares.
Então aconteceu que a mulher do Pedrão, chamada de Dona Araci, que ajudava muito o marido fazendo doces e quitandas, vendidos no balcão da venda, trabalhando a mais não poder, desandou a amolecer o corpo, ter uns arrepios e perdeu o vigor para ajudar o marido e até mesmo cuidar das coisas da casa.
Por duas vezes o marido foi à cidade comprar remédios na farmácia do doutor Ludovico, que não era doutor coisa nenhuma e sim um prático de farmácia com tino comercial para manter uma boa freguesia em seu estabelecimento, aconselhando e medicando a quem o procurasse com problemas de saúde.
Apesar dos remédios (e não foram poucos os receitados pelo “doutor”), dona Araci só piorava: cada vez mais fraca, cada vez sem vontade de trabalhar. Alguns amigos de Pedrão aconselharam:
— Pedrão, pede pra Dona Frósina vim ver sua mulher. Ela tá se acabando.
Não foi nem uma nem duas vezes que Pedrão respondeu com negativas.
— Qual o quê, sô. Isso aí passa, é da idade.
Mas a quebreira de dona Aracy só aumentava.
Até que um dia, passados alguns meses, dona Euflosina apareceu na venda de Pedrão e com muita simplicidade disse:
— Dá licença, seu Pedrão? Eu queria visitar dona Araci, só prum dedo de prosa com ela.
— Tá bem, dona Frausina, si é só pra cunversá, pode entrá. Ela tá no quarto, deitada.
Dona Euflosina sentiu um nó na garganta quando viu deitada em sua cama de casal a figura derreada daquela mulher que tinha sido tão trabalhadeira e forte. Estava muito magra, miúda, parecia mais uma criança estendida sobre aquela imensa colcha de retalhos.
Conversa vai, conversa vem, apalpa daqui e dali soube qual era o mal que afligia dona Araci. E conhecia a erva que poderia curá-la.
Pedrão surgiu na porta e dona Euflosina apressou-se em se despedir. Mas não se conteve e disse:
— Ela precisa tomar um chá de canela-de-jacaré. Só isso pode fazer dona Araci ficar forte e disposta, de novo.
Pedrão olhou para a ervateira com olhos de quase-raiva e disse na sua voz potente:
— Ara, dona Frósina, a senhora não sabe nem um dedim mindinho do que o dotor Ludovico sabe. Ele é que intende dessas coisa de mulher. Me fais o favor de não voltar aqui com essa conversa de chá de canela... canela de jacaré. Ora bolas!
Ninguém sabe o que está escrito nas estrelas nem do que se passa entre marido e mulher. No dia seguinte, Pedrão bateu palmas na porta da casa de dona Euflosina.
Ela gritou lá de dentro:
— Pode entrá, a porta tá aberta.
Meio sem jeito, Pedrão entrou. A dona da casa veio dos fundos, enxugando a mão em um avental.
— Óia, mais é o seu Pedrão. Aconteceu arguma coisa? Dona Araci...?
— Não, num aconteceu nada, não sinhora. Minha mulher mandou em vim pedir prá senhora um pouco do chá de... de... de canela...
— Canela de jacaré! — completou a ervatária.
— Sim... é... ela quer exprimentar.
— Mas fais o favor de sentar, seu Pedrão.
Ele toma assento num banquinho capenga.
— Sim, é cumo eu disse, falou a velha senhora. Chá de canela-de-jacaré. Só isso é que pode curar Dona Araci... Mas tem um porém...— ela parou, como se pensasse no que ia dizer.
— Diga logo, dona Frôsina.
— É que essa tar canela de jacaré só dá nos lugar mais arto da morraria. Por aqui num tem não. Sei que tem é no cume da serra Aguda, lugar longe e dificir de chegar.
— Mais cumé que a gente pode pegar essa tar erva?
— Muito longe pra ir a pé. Eu nun guento ir lá a pé, não sinhor.
Pedrão Correia era homem decidido. Quando entrava numa empreita, era tudo ou nada. Falou:
— Vou falar com o Zeca Zaroio, que tem uma charretinha boa de levar gente. Ele leva a sinhora, seja que preço for. Pode preparar!
A “charretinha de levar gente” era uma charrete antiga, de quatro rodas, para transporte de pessoas, com bancos almofadados para quatro ocupantes e uma cobertura que abrigava os usuários do sol quente ou da chuva. Para valorizar sua charrete e cobrar um bom preço pelos raros serviços, ele dizia sem medo de mentir:
— Essa minha charrete já carregou até Dom Pedro, o Imperador do Brasil, faz mais de 100 anos.
Mentira ou não, o certo que a charrete era bem conservada e funcionava, sim, quando era preciso. Puxada pelo forte cavalo “Mangalote” também de propriedade de Zeca Zarolho.
O negócio de Pedrão e Zeca foi rápido, ficou a partida marcada para o dia seguinte bem cedinho. Pedrão voltou à casinha de dona Euflosina para avisá-la:
— A senhora se apronte que amanhã bem cedim o Zeca Zaroio vem pegar a sinhora prá levar lá onde tem a canela-de-jacaré.
Dona Euflosina encheu duas cestas com farofa, frangos assados, carne seca e pães, levou espiriteira, bule e coador prá fazer café, enfim, o necessário para os seis dias de viagem, três de ida e três de volta. Para ela para o Zeca.
A viagem foi sem incidentes. Pernoitaram em casa dos moradores por perto da estrada, que tinham o maior prazer de receber as poucas pessoas que por ali transitavam.
Chegaram ao alto da Serra Aguda, uma elevação que se destacava por entre a morraria do lugar. A charrete parou no inicio da subida.
— Num dá prá subir lá com a charrete, a subida é forte. Mas vou desarriar o cavalo e depois nóis sobe lá em riba pra colher as folha que a senhora precisa.
Assim foi. A idosa dona Euflosina era bem forte, e os dois subiram sem dificuldade. No alto, touceiras de arbustos de formas atarracadas, troncos cobertos por casca enrugada e grossa e com pequeninas flores brancas nas pontas dos galhos irregulares.
Ela começou a colher folhas e pediu ao Zeca que cortasse lascas dos troncos. Encheram duas cestas com a erva para os chás e garrafadas da rara canela-de-jacaré (1).
A volta foi tranqüila, sem incidentes.
No sétimo dia depois da saída, dona Euflosina chegou até a venda de Pedrão Correia, portando uma cesta de taquara cheia de folhas e cascas, cobertas com alvíssima toalhinha. .
— Bão dia, seu Pedrão. Òia aqui a sarvação de dona Araci. — e colocou a cesta em cima do balcão.
— Oia quem ta aqui! Bom dia dona Frausina. Vamo entrando.
— E dona Araci, cumé que tá?
— Ara, num melorô nem piorô. Tá na mesma.
Expedita, dona Euflosina entrou no quarto, deu dois dedos de prosa com dona Araci, e foi para a cozinha. Não demorou nem dez minutos, apareceu com um bule cheio de chá, que fez dona Arací tomar.
— Amargo... — disse a doente em voz debilitada.
— Mais é bão. Vai curá a sinhora.
E teve inicio o tratamento. Chá de três em três horas e água da garrafada de cascas duas vezes por dia.
Cidinha, meninota filha de uma vizinha, que ajudava na limpeza da casa, tomou conta do tratamento.
A melhora se fez sentir longo uma semana a partir do tratamento. E para encurtar a conversa, seis meses depois, Dona Araci já era a mesma mulher de antes: disposta, alegre e trabalhadeira.
Pedrão Correia ficou muito agradecido a Dona Euflosina. Tomou-se de entusiasmo pelos chás, garrafadas e o que mais a velha ervateira usava para a cura de pessoas, que passou a ser o seu propagandista. Não se cansava de falar em alto e bom tom, par seus cliente e até mesmo para quem passasse em frente da venda:
— Dona Frausina é que sabe das artes de curá. Inda mais quando prepara o chá de canela-de-jacaré. Santa Mulher!!! Santo Remédio !!!
(1) Canela-de-Jacaré: Provavelmente se tratava da Octea Senirula, PL anta do cerrado de Minas Gerais.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 8 de Agosto de 2017.
CONTO 1027 DA SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS -