O CEGO E O BURRO
Já era quase seis da manhã quando o urro ecoante do jumento despertou-me do sono. Não era a primeira vez, tampouco seria a última. Depois que passei a morar ali naquele novo recinto, o burro da chácara do vizinho virara o meu despertador.
Ainda muito sonolento alcancei a parada do ônibus. Menos de uma hora depois eu já estava no centro da cidade. Confundia-se com um formigueiro. Eu nada mais era que uma simples formiguinha prestes a atravessar a larga avenida. Logo, o farol abriu permitindo a minha passagem e de mais um turbilhão de pessoas.
– Porque ele não veio? – Perguntei para mim mesmo já olhando para trás.
A ponta da bengala tocava no asfalto de modo repetitivo. Voltei, agarrei em seu braço e começamos a atravessar a pista pela faixa de pedestre, espremidos pelos mais apressados.
– Eu sempre falo que o mundo ainda não está perdido?
– Quem? – Perguntei.
– Como assim, quem? – Olhou para mim e franziu a testa.
– Aproximei minha boca do ouvido esquerdo dele e repeti:
– Quem não está perdido?
– Não estou entendendo... – Disse.
Aproximei ainda mais e gritei:
– Perguntei quem o senhor disse que ainda não está perdido.
– Continuo não lhe entendendo. O que está querendo fazer?
– Fazer? – Retruquei em tom gritante.
Para não ter dúvida da compreensão, abracei-o calorosamente e perguntei ainda mais alto:
– Fazer?
– Respeite o meu estado! – Ordenou num tom agressivo.
– Calma. – Pedi, compassadamente.
Segurei-o, ainda mais forte, temendo que sua fragilidade o derrubasse em meio a faixa de pedestre. Preguei meus lábios na orelha dele e gritei mudando de assunto:
– Deve ser o barulho?
– Creio que sim? – Concordou.
Quando o semáforo ameaçava a abrir estávamos quase finalizando a travessia e por questão de segurança avisei-o:
– O barulhão, o senhor não vai poder ouvir, mas preste atenção no sinal. Logo, logo vai abrir.
Nada respondeu-me. Apenas ameaçou acelerar o passo.
– Ainda temos um tempinho. – Acalmei-o.
Ao atingir a calçada do outro lado da avenida, de supetão ele se soltou de mim e ia se afastando. Cheio de dúvida, olhou em minha cara e perguntou.
– A quanto tempo foi atingido?
– Atingido? – Interroguei-o, sem nada entender.
– Pela surdez. – Disse naturalmente.
– Surdez? – Gritei para ter certeza de que ele me ouviria e continuei:
– Não, meu senhor, eu não sou acometido de surdez.
– Não? – Conferiu.
– Não. – Reafirmei, aproximando ainda mais dos ouvidos dele.
– Escuta-me, por favor... Então, porque tem mania de esfregar no outro, perguntar tudo e falar tão alto? – Questionou-me.
Não pude segurar a gargalhada, por mais que tentasse. Encostei ainda mais nele, levei minhas mãos junto à boca para direcionar o som aos ouvidos do velho e quase gritando respondi:
– Para o senhor ouvir melhor, ora!
– Eu? Ouvir melhor? – Zombou.
– Não é tão surdo? – Perguntei com a voz alta.
– Surdo? O moço está enganado. Minha deficiência é visual! Porque acha que demorei tanto para começar a atravessar a faixa? – Explicou, à medida que se afastava de mim tocando sua bengala nas pernas dos transeuntes.
Somente depois que passei por burro compreendi que ele era cego e que de surdo o velho não tinha nada.