Filhos da noite
Acendeu um cigarro de palha e ficou reparando uma mulher, quase vestida. Quase nua. Acenando para os homens: ‘Um beijo é só dez reais...’ Anacleto aproximou-se. Não da mulher. Anacleto aproximou-se do homem que fumava um cigarro de palha:
— Sou o bombeiro Anacleto. Nascido em Matipó e morador do Rio de Janeiro, desde menino.
— Eu também sou mineiro, uai! Meu nome é João. Lá no Juramento me chamam de João Velho.
Fizemos amizade. Era mais pra trocar um dedo de prosa. Ele nem conheci Matipó, mas disse que tinha uns parentes ali perto, pras bandas de Raul Soares. Parente longe. Afastado. Certa noite, voltando da Vila Mimosa — descreve Anacleto — a luz apagou. Num apagou toda não! Soltou faísca e ficou fraquinha, igual lamparina. Foi quando dois encapuzados, atacaram um homem gordo. Arrancaram os penduricalhos dele e guardaram numa sacola de supermercado. Jogaram o homem dentro do bagageiro de um carro e saíram. Devem ter desovado o defunto nalgum matagal. Naquela mesma hora, João foi abordado por dois homens, sem máscara. Mostrando a cara para quem quisesse ver. João caminhou no rumo deles. Puxou um toco de faca e feriu um. O outro fugiu.
Percebendo que Anacleto penetrava em campo minado, Androceu pagou a conta e se retirou.
— Voltando ao assunto, senhor Anacleto. Você não acudiu seu amigo quando ele foi atacado por bandidos?
— Fiz menção. Mas não deu tempo. João é ligeiro que nem um gato... O dono da fazenda criava cavalos de raça...
— Aquieta com essa história! Vai contar de novo?...
— Põe mais uma pinga...
— Paga primeiro!
O Português se sentia incomodado com a presença de Anacleto.
— Já disse que não lhe vendo fiado...
O velho Anacleto descansou os cotovelos no balcão de alvenaria e se fingiu de surdo.
— Não incomode meus fregueses — disse o Português que sempre tinha um pano de prato semiúmido nos ombros e não pensava duas vezes para dar uma panada em algum bêbedo inconveniente.
— Doutor Cibório Gonçalves — disse Anacleto estendendo a mão ao senhor de terno azul que acabara de chegar — o senhor pode pagar uma pinga para o velho Anacleto?
— Você quer dizer Zé Mingau, não? — disse o doutor acomodando o paletó no espaldar de uma cadeira.
— Para com isso, doutor Cibório! Apelido não pega em mim. Apelido só pega se o camarada se aborrecer com o apelido. Em mim não pega!
— Falou bonito, Zé Mingau!
— Não gosto deste apelido, respondeu Anacleto.
— Pago uma pinga se você contar de onde veio seu apelido de Zé Mingau, disse doutor.
— Bote a pinga aí, que eu conto. Mas vou avisando: eu estava certo, o padre, errado.
Anacleto pegou o copo.
— Conte o caso antes de beber a cachaça — falou com firmeza de voz o dono do bar.
— Aconteceu quando fui batizar meu filho. Tinha outras pessoas também batizando seus meninos. Quando chegou minha vez, o padre perguntou: ‘Como vai se chamar a criança?’ — Respondi: ‘Zé Mingau.’— Com este nome, não batizo. — Aí, eu respondi: ‘Meu filho não pode se chamar Zé Mingau, mas o chefe do senhor pode ser Papa. O povo riu. O padre deu a ideia de botar o nome de José Américo no menino. Aceitei. Mas quando sai. O apelido Zé Mingau pegou em mim, igual visgo.’
Houve uma explosão de risos...
Do outro lado da rua, um homem gordo estaciona um fusca preto.
— Androceu voltou. Deve ter vindo tomar satisfação com Zé Mingau — preocupou-se o Portuga.
— O doutor conversa bonito — disse Androceu ao entrar no bar pela segunda vez naquela noite.
Androceu referia-se a Cibório de quem ouvira um nesga da prosa.
— Androceu, meu amigo!... Paga uma para mim!
—Bote uma pra Zé Mingau, seu Portuga.
— Só essa. Vou fechar o bar daqui a pouco.
Fingindo desequilíbrio, Zé Mingau agarrou-se à cintura de Androceu, e constatou que o amigo não estava armado.
— Veio buscar sua égua, Zé? João Zoé... João Velho... Afinal como é teu nome?
Androceu buliu com a pessoa errada.
— É hoje que abro a barriga de um porco — disse Zé da Égua.
Doutor Cibório intervém.
— Se tem Jorge Velho, João Velho também pode ser nome próprio. Há pessoas registradas com nomes estrambóticos: Dinotério, Hostil, Vespasiano...Dizem que numa cidade do Norte de Minas, um menino foi batizado como o nome Um Dois Três de Oliveira Quatro.
O Português olhou de soslaio para doutor Cibório.
— Naquele mesmo cartório, há outro registrado como Zé Casou de Calça Curta. Provavelmente, os pais eram analfabetos, e algum tabelião fez essa maldade.
— Seu Portuga, é verdade que seu nome é Manuel?
— Vamos parar com essa prosa. Por hoje, o expediente está encerrado. Falou encerado, como se a grafia fosse apenas com um ‘R’
— Só mais uma, seu Portuga.
— Não...Não...Tá na hora de brincar da brasa.
— Que é isso?
— Cada um em sua casa, entendeu?
A noite no Rio de Janeiro, já não era mais criança, e a contagem dos últimos tempos se inicia: O rio se afoga, o fogo se queima, a mata agoniza, e o arco-íris bebe água na miragem. A cidade exibe os filhos da noite e o pecado desfila revelando os sinais da parusia: homem vestido de mulher, e mulher vestida de homem — gêneros ocultos nas veste e na fala — homens com peito de silicone, e mulheres com trejeitos de homem. É o caos, e a partir daquela hora, a Vila Mimosa passeia na Tijuca: Ramayana chega abraçada com Leonardo, arrastando Conchita pelo braço. Ora beija um, ora a outra. Finge que não vê Cibório. E Cibório não a reconhece tatuada e de cabelo azul com mexas vermelhas, ou vermelho com mexas azuis, gorda e implume, como uma arara cevada em cativeiro. No rosto o sinal de quem muitas vezes, vira o sol nascer quadrado, e na voz, a linguagem codificada de presídio.
— Pega uma cerveja para nós, Português!
— Não sirvo mais bebida à esta hora. Já baixei as portas.
— Pô, meu! Serve uma branquela pros manos aí!
— Hoje não.
— Tipo assim... Só umazinha, de boa!
— Só amanhã.
Os fregueses resmungam, sentindo-se escorraçados. E se vão.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estela que o vento soprou."
— Sou o bombeiro Anacleto. Nascido em Matipó e morador do Rio de Janeiro, desde menino.
— Eu também sou mineiro, uai! Meu nome é João. Lá no Juramento me chamam de João Velho.
Fizemos amizade. Era mais pra trocar um dedo de prosa. Ele nem conheci Matipó, mas disse que tinha uns parentes ali perto, pras bandas de Raul Soares. Parente longe. Afastado. Certa noite, voltando da Vila Mimosa — descreve Anacleto — a luz apagou. Num apagou toda não! Soltou faísca e ficou fraquinha, igual lamparina. Foi quando dois encapuzados, atacaram um homem gordo. Arrancaram os penduricalhos dele e guardaram numa sacola de supermercado. Jogaram o homem dentro do bagageiro de um carro e saíram. Devem ter desovado o defunto nalgum matagal. Naquela mesma hora, João foi abordado por dois homens, sem máscara. Mostrando a cara para quem quisesse ver. João caminhou no rumo deles. Puxou um toco de faca e feriu um. O outro fugiu.
Percebendo que Anacleto penetrava em campo minado, Androceu pagou a conta e se retirou.
— Voltando ao assunto, senhor Anacleto. Você não acudiu seu amigo quando ele foi atacado por bandidos?
— Fiz menção. Mas não deu tempo. João é ligeiro que nem um gato... O dono da fazenda criava cavalos de raça...
— Aquieta com essa história! Vai contar de novo?...
— Põe mais uma pinga...
— Paga primeiro!
O Português se sentia incomodado com a presença de Anacleto.
— Já disse que não lhe vendo fiado...
O velho Anacleto descansou os cotovelos no balcão de alvenaria e se fingiu de surdo.
— Não incomode meus fregueses — disse o Português que sempre tinha um pano de prato semiúmido nos ombros e não pensava duas vezes para dar uma panada em algum bêbedo inconveniente.
— Doutor Cibório Gonçalves — disse Anacleto estendendo a mão ao senhor de terno azul que acabara de chegar — o senhor pode pagar uma pinga para o velho Anacleto?
— Você quer dizer Zé Mingau, não? — disse o doutor acomodando o paletó no espaldar de uma cadeira.
— Para com isso, doutor Cibório! Apelido não pega em mim. Apelido só pega se o camarada se aborrecer com o apelido. Em mim não pega!
— Falou bonito, Zé Mingau!
— Não gosto deste apelido, respondeu Anacleto.
— Pago uma pinga se você contar de onde veio seu apelido de Zé Mingau, disse doutor.
— Bote a pinga aí, que eu conto. Mas vou avisando: eu estava certo, o padre, errado.
Anacleto pegou o copo.
— Conte o caso antes de beber a cachaça — falou com firmeza de voz o dono do bar.
— Aconteceu quando fui batizar meu filho. Tinha outras pessoas também batizando seus meninos. Quando chegou minha vez, o padre perguntou: ‘Como vai se chamar a criança?’ — Respondi: ‘Zé Mingau.’— Com este nome, não batizo. — Aí, eu respondi: ‘Meu filho não pode se chamar Zé Mingau, mas o chefe do senhor pode ser Papa. O povo riu. O padre deu a ideia de botar o nome de José Américo no menino. Aceitei. Mas quando sai. O apelido Zé Mingau pegou em mim, igual visgo.’
Houve uma explosão de risos...
Do outro lado da rua, um homem gordo estaciona um fusca preto.
— Androceu voltou. Deve ter vindo tomar satisfação com Zé Mingau — preocupou-se o Portuga.
— O doutor conversa bonito — disse Androceu ao entrar no bar pela segunda vez naquela noite.
Androceu referia-se a Cibório de quem ouvira um nesga da prosa.
— Androceu, meu amigo!... Paga uma para mim!
—Bote uma pra Zé Mingau, seu Portuga.
— Só essa. Vou fechar o bar daqui a pouco.
Fingindo desequilíbrio, Zé Mingau agarrou-se à cintura de Androceu, e constatou que o amigo não estava armado.
— Veio buscar sua égua, Zé? João Zoé... João Velho... Afinal como é teu nome?
Androceu buliu com a pessoa errada.
— É hoje que abro a barriga de um porco — disse Zé da Égua.
Doutor Cibório intervém.
— Se tem Jorge Velho, João Velho também pode ser nome próprio. Há pessoas registradas com nomes estrambóticos: Dinotério, Hostil, Vespasiano...Dizem que numa cidade do Norte de Minas, um menino foi batizado como o nome Um Dois Três de Oliveira Quatro.
O Português olhou de soslaio para doutor Cibório.
— Naquele mesmo cartório, há outro registrado como Zé Casou de Calça Curta. Provavelmente, os pais eram analfabetos, e algum tabelião fez essa maldade.
— Seu Portuga, é verdade que seu nome é Manuel?
— Vamos parar com essa prosa. Por hoje, o expediente está encerrado. Falou encerado, como se a grafia fosse apenas com um ‘R’
— Só mais uma, seu Portuga.
— Não...Não...Tá na hora de brincar da brasa.
— Que é isso?
— Cada um em sua casa, entendeu?
A noite no Rio de Janeiro, já não era mais criança, e a contagem dos últimos tempos se inicia: O rio se afoga, o fogo se queima, a mata agoniza, e o arco-íris bebe água na miragem. A cidade exibe os filhos da noite e o pecado desfila revelando os sinais da parusia: homem vestido de mulher, e mulher vestida de homem — gêneros ocultos nas veste e na fala — homens com peito de silicone, e mulheres com trejeitos de homem. É o caos, e a partir daquela hora, a Vila Mimosa passeia na Tijuca: Ramayana chega abraçada com Leonardo, arrastando Conchita pelo braço. Ora beija um, ora a outra. Finge que não vê Cibório. E Cibório não a reconhece tatuada e de cabelo azul com mexas vermelhas, ou vermelho com mexas azuis, gorda e implume, como uma arara cevada em cativeiro. No rosto o sinal de quem muitas vezes, vira o sol nascer quadrado, e na voz, a linguagem codificada de presídio.
— Pega uma cerveja para nós, Português!
— Não sirvo mais bebida à esta hora. Já baixei as portas.
— Pô, meu! Serve uma branquela pros manos aí!
— Hoje não.
— Tipo assim... Só umazinha, de boa!
— Só amanhã.
Os fregueses resmungam, sentindo-se escorraçados. E se vão.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estela que o vento soprou."