Um dia da minha vida
Naquele dia, eu sentia que alguma coisa estava errada. Entretanto não tinha a menor idéia do que poderia ser. De manhã cedo, como todos os dias, as mulheres foram para a farinheira, enquanto os homens seguiram para a roça. Já fazia semanas que todos os dias esta cena se repetia. De manhã cedo os homens seguiam para a roça arrancar mandioca. As mulheres trabalhavam divididas em dois grupos. As primeiras pegavam as mandiocas do jeito que chegava da roça, cortava fora o talo e descascavam até a metade; o outro grupo pegava a metade descascada e acabavam de descascá-la toda. Assim, o primeiro grupo de mulheres ficava com as mãos sempre sujas de terra enquanto que o outro grupo ficava sempre com as mãos limpas, desta maneira as mandiocas ficavam limpas e não precisavam ser lavadas. À tarde tirava da prensa a massa do dia anterior, e enquanto os homens torravam para produzir a farinha, as mulheres assavam transformando-a em beiju. A mandioca descascada pela manhã era ralada e ia para a prensa. À noite, depois de ensacada a farinha, tomavam um banho no ribeirão para recompor as energias.
Minha obrigação matutina era transportar as mandiocas da roça para a farinheira. Nós possuíamos uma mulinha e um jegue que usávamos para esta finalidade. Na verdade eu era apenas o condutor, pois na roça os homens colocavam o caçuá carregado de mandioca na cangalha dos animais e quando eu chegava com eles na farinheira, a minha mãe, com a ajuda da minha cunhada tratavam de descarregá-los. A minha parte da tarefa era a maior moleza, a mulinha sempre seguia em frente, rapidamente em direção da farinheira, descia a estrada escorregadia até o ribeirão, atravessava célere a velha ponte de madeira já meio apodrecida pelo tempo, em seguida subia a ladeira, contornava a nossa casa passando debaixo do abacateiro, que a esta época do ano estava carregada e, depois descia em direção da cachoeira, já sabia que chegando lá as mulheres tratariam de aliviá-la do peso. O jegue sempre seguia a mula, preguiçosamente, balançando o rabo para espantar os mutucas, seguia vagarosamente, e eu só tinha que ir atrás deles com um improvisado chicotinho de ramos, apressando o folgado.
Naquela manhã, entretanto, eu não fui para a roça com os homens. Mandaram-me ficar em casa com as crianças. Eu tinha naquela época nove anos. As crianças eram os filhos dos meus irmãos, e tinham todos por volta de cinco ou seis anos. Eu, como já era “grande” deveria tomar conta deles. Nesses dias eu estava liberado do trabalho. Só tinha que evitar que as crianças fossem para o rio onde poderiam se afogar, e entretê-los para que ficassem brincando e não fossem incomodar os adultos. Brincávamos de “esconde-esconde” e “pega-pega”, mas eu sempre estava consciente da minha condição de “grande” tomando conta dos “pequenos”, sabia que qualquer coisa que acontecesse seria minha responsabilidade, e mediando a discórdia, evitando que eles brigassem, eu não sentia que estava brincando, mas sim trabalhando, para que os adultos não fossem interrompidos nos seus afazeres.
Não sabia por que esta manhã tinha que ser diferente. Não entendia porque as crianças não podiam ficar brincando na farinheira entre as mulheres, e eu não deveria estar cuidando dos animais no transporte da mandioca até a farinheira. Mas tudo bem, se a minha obrigação era cuidar das crianças eu trataria de fazê-lo bem feito.
A nossa família estava em sérias dificuldades financeiras. Depois que papai adoeceu e precisaram se internar num hospital em Itabuna as coisas ficaram feias e eu sabia disto. Toda a roça de mandioca estava sendo consumida para fazer a farinha que seria vendida para pagar a conta do hospital. O problema era que o mandiocal ainda estava muito novo e a mandioca colhida antes do tempo, apesar de estar grande e bonita produzia pouca farinha. Mas os credores tinham pressa e não podiam esperar. Além disso, havia um outro problema, quando papai estava no comando, nós sempre plantávamos uma roça antes de colher a outra. Mas desta vez, no tempo de plantar a roça nova, já estávamos colhendo a velha e na área onde deveríamos ter plantado a nova roça, o mato crescia. E não faltava muito para chegar ao fim do roçado. - Se papai não ficar bom logo só vão restar os pés de cacau novo e a seringueira, o que significa que vamos ficar sem renda nenhuma. Pensei.
Meu irmão mais velho arranjou um bom emprego, e foi embora morar na cidade. Retornava uma vez por mês quando recebia o pagamento. Entretanto, os que ficaram tinham que trabalhar dobrado para continuarmos a produzir a farinha.
Papai havia retornado do hospital já fazia algumas semanas, mas queixava-se de muita dor. Eu não compreendia muito bem o que se passava, mas sabia que seu estado era grave. Um dia, acordei no meio da noite e tive a impressão de ouvir soluços. No meio da noite, o silêncio era total, e de algum lugar, bem baixinho eu estava ouvindo soluços. O sono passou e a curiosidade tomou conta de mim. Agucei os ouvidos tentando ouvir mais alguma coisa, a escuridão da noite feria os meus olhos que embora bem abertos nada enxergavam. Com as mãos, esfreguei-os como a me certificar que estavam abertos, mas apenas se ouvia o som da cachoeira rugindo como sempre, mas pude perceber que a sua água havia aumentado de volume com as últimas chuvas, também havia o vento passando entre as folhas do abacateiro bem defronte a minha janela como num sussurro. Foi neste momento que consegui distinguir a voz do meu pai. Ele falava baixinho, mas pude ouvi-lo claramente, pedindo a minha mãe que ela permitisse que ele pusesse fim em sua vida. Ele dizia que não estava mais suportando conviver com aquela dor que não passava nunca e que se ela desse o consentimento, ele poderia finalmente descansar. Agora ouvia claramente, a sua voz, estava serena e calma, dava para perceber que ele tentava transmitir-lhe coragem. – Eu sei que mandaram de volta para casa só para não morrer sozinho no hospital. Sei que de qualquer modo não tenho muito tempo de vida, o que lhe peço é que me permita abreviar um pouquinho o tempo de sofrimento, dizia. Parecia que eu estava vendo as mãos dele segurando firmemente as mãos dela, pedindo, quase implorando pela sua liberdade, a liberdade de por fim a sua vida, de abandonar os entes queridos por quem tinha tanto amor e responsabilidade. - Só preciso que você diga que vai cuidar do nosso filho, dizia. – Sei que você é forte o suficiente, e os outros já estão crescidos, já são adultos e vai saber se cuidar.
- Não, por favor, não me deixe aqui sozinha. Era minha mãe que soluçava. – Não me peça uma coisa dessas. Eu não vou suportar viver aqui sozinha sem você, dizia. Um turbilhão de sentimentos contraditórios me envolveu. Tive ímpetos de gritar que ele não tinha o direito de nos abandonar assim. No mesmo instante, por saber do seu sofrimento, tive desejo de poder dizer-lhe que não havia com que se preocupar, que ele poderia partir tranqüilo que eu estaria bem e que eu saberia cuidar dela, em seu lugar. As lágrimas encheram os meus olhos, escorreu pelo rosto indo molhar o travesseiro.
Naquela noite não pude ouvir mais nada, chorei, chorei até adormecer, e na manhã seguinte quando acordei tudo me pareceu normal, a mamãe estava calma e tranqüila. Pensei que eu talvez tivesse sonhado. Entretanto não era bem assim.
Agora a garotada estava brincando de “esconde-esconde”, e havia uma pequena confusão por que Lica, tendo sido a primeira a ser encontrada em seu esconderijo, reclamava dizendo que eu não tinha aguardado ela gritar “pronto” para começar a procurar. E ela gritava – Assim não vale, assim não vale. Foi nesse momento que eu senti a presença do meu pai. Ele olhava para mim, sua expressão era severa, talvez por causa da sua dor constante, mas a sua feição estava estranha. Eu jamais vira meu pai assim, alguma coisa estava errada. Procurou se acalmar, pois respirou fundo antes de falar comigo.
- Estou com muita dor hoje, disse, vocês estão fazendo muito barulho e não consigo dormir, vão brincar longe daqui e me deixe um pouco em paz.
- “Sim senhor!”, respondi e chamei a turma toda para irmos brincar no ribeirão. Observei que papai trazia numa das mãos uma corda, e noutra trazia alguma coisa num saco. Estranhei por que parecia que ele ia fazer alguma coisa, não tinha jeito de quem ia tentar dormir...
A água do ribeirão estava fria, corria silenciosamente entre as pedras, e apesar das últimas chuvas estava límpida. Logo encontrei um gajé escondido sobre uma pedrinha submersa. Sua cor marrom e seu formato arredondado, faz dele o próprio disfarce. Somente os olhos atentos de uma criança habituada com ele conseguiriam distingui-lo entre as pedrinhas. - Pegue esta latinha pra mim, pedi. – É para o gajé que peguei, gritei. Um dos meninos me deu uma lata aberta de óleo de algodão “Salada”, que usávamos para pegar água do ribeirão. Instantes depois eu já estava dentro ribeirão com a água acima dos joelhos, e debruçado, com as duas mãos cercando um minúsculo pitu. Os meninos haviam arranjado uma peneira e com ela improvisado um jereré e estavam pegando camarões e caramujos, que a noite seria cozidos para reforçar o jantar.
- Vem vê! Vem vê! Era a Lica que me chamava. Nos seus lábios um sorriso encabulado de quem não sabe o que dizer. - Vem vê! Repetiu.
Eu estava tão concentrado naquela pescaria, que tinha me esquecido de tudo, das crianças e do tempo. Eu já estava no ribeirão há mais de uma hora sem me dar conta disso. Enquanto os meninos estavam entretidos no jereré improvisado, a minha sobrinha subira a ladeira e retornara para casa, e era de lá que vinha correndo e gritando encabulada. – Vem vê!
Apesar do seu sorriso, havia algo de sério, de imperioso e urgente na sua voz. - Vem vê!
Subi a ladeira correndo. O sol do meio dia não chegava a incomodar, a chuva do dia anterior refrescara a manhã, e o caminho ainda estava úmido. A minha casa ficava no alto de uma colina, com a vista para a cachoeira. Meu pai escolhera este lugar por ser a mais bela paisagem da redondeza. Dela se avistava o rio descendo caudaloso, de repente, no início da curva, começava a cachoeira. Era na verdade uma corredeira cheia de pedras. Não havia uma queda de água, mas em compensação a corredeira era longa e cheia de pedras enormes que obrigavam a água num estrondo mudar de direção a toda hora. Perto, o ruído era ensurdecedor, mas da casa mais parecia um rugido de algum animal gigantesco num longo e interminável lamento. A brisa que subia do rio era refrescante e constante o ano todo. Havíamos construído três casas no alto da colina. As casas dos meus dois irmãos casados ainda não estavam totalmente concluídas, mas cada um construiu a sua casa com seu jeito e seus sonhos. O mais velho levantou uma casa de dois pavimentos, onde o andar de cima seria o aposento do casal. Por ser a maior, era também a que mais detalhes faltavam para ser concluída. Mas em vista do que se passara com o casal, era muito pouco provável que aquela casa viesse a ficar totalmente concluída. Já a segunda casa, sendo talvez a menor, estava quase concluída e abrigava além do meu irmão, a sua esposa e seus dois filhos. Havia um fio engenhosamente instalado entre as duas casas, que servia como uma campainha ou um despertador. Pela manhã, quando o café ficava pronto, a minha cunhada puxava violentamente o fio, tocando a campainha chamando o meu irmão mais velho, seu cunhado, para o desjejum. Este improvisado telefone foi instalado no dia seguinte em que a minha outra cunhada foi embora de sua casa. A minha casa era naturalmente a mais bem acabada. Construída pelas mãos hábeis do meu pai, tinha na entrada um pequeno espaço onde as pessoas poderiam deixar os calçados na hora de adentrar na casa. A sala e o quarto do casal eram de um assoalho de madeira chanfrada e ficava cerca de 50 centímetros acima do chão. No canto da sala havia uma escadinha improvisada que levava a um sótão que era na verdade o meu quarto. Nos quartos da casa não havia camas, pois o colchão de algodão trazido do Japão era disposto no assoalho durante a noite e cuidadosamente dobradas e recolhidas no seu devido lugar durante o dia. Para entrar na casa era preciso tirar os sapatos, e quem vinha descalço só poderia entrar na cozinha e pela porta dos fundos. Na construção da casa não fora empregada cimento, a argamassa era de barro, e o acabamento era de madeira. O telhado era de uma palha muito comum na região, habilmente trançada com cipó em ripas de juçara.
Ao chegar a casa, vi de um relance, algo estranho dependurado no teto da sala. Havia uma corda firmemente amarrada na madeira da cumeeira e nela estava pendurado um corpo enrolado no pano verde de mosqueteiro.
A corda era aquela que meu pai carregava momentos atrás em suas mãos. O saco que trazia noutra mão estava caído no chão ao lado de uma banqueta, próximo dos pés que descobertos pareciam apontar para o saco denunciando de quem seria o corpo dependurado e encoberto pelo tecido. Percebi instintivamente a gravidade da situação. Pensei que seria necessário tirá-lo daquela posição antes que fosse tarde demais. Em momento algum passou pela minha cabeça que já não houvesse mais vida no corpo inerte do meu pai. Percebi que não teria força suficiente para descê-lo dali sozinho, e disparei em direção a farinheira onde as mulheres descascavam tranqüilamente as mandiocas arrancadas e carregadas pelos homens, tagarelando alegremente. As palavras não saíam da minha boca, tentei diversas vezes explicar o que estava acontecendo, mas as palavras haviam desaparecido. Somente o meu desespero foi compreendido, e a única palavra que saiu da minha boca foi, - Papai...
Quando me vi novamente em casa, o corpo do meu pai havia sido acomodado sobre um colchão, minha mãe chorava copiosamente segurando a sua mão, enquanto a minha cunhada aplicava uma injeção no outro braço.
- Acorda pelo amor de deus! Dizia
Saí sem fazer ruído, sem que percebessem que eu estive ali. Sabia que a minha presença não ajudaria em nada naquele momento. Desci a ladeira e quando percebi estava molhando os pés nas águas frias do rio.
A cachoeira continuava ruidosa, e o vento jogava os respingos em meu rosto. As lavadeiras molhavam suas asas e se refrescavam sem ligar para a minha presença acanhada. O sol sobre a minha cabeça obrigou-me a abaixar para molhar os cabelos que pareciam em chamas. Não podia ser verdade, não o meu pai. Corri ladeira acima, precisava confirmar, o meu pai deve estar dormindo a esta hora, ele estava com muita dor de cabeça, mandou-me sair de lá e parar com o barulho. Deve estar dormindo. Eu devo estar imaginando coisas. Não estava.
Semanas depois, ainda repetia este ritual. Corria até a casa, subia na sala sem limpar os pés descalços, caminhava sorrateiramente sobre o assoalho para não fazer barulho e olhava para o seu quarto. Vazio. Sempre vazio.