REDENÇÃO*
Vê-lo arquejante, apesar de vigoroso ainda, reter lágrimas teimosas a denunciá-lo fragilizado, fez-me ir e vir em reminiscências, onde antes sempre encontrava-o rancoroso e inflexível, arraigado a um sentimento vil de vingança, de orgulho ferido, e de recalques contra a própria família. Ali se achava, admitindo o que antes parecia inadmissível, suas responsabilidades e intransigências. De pai orgulhoso e austero, possivelmente pela formação paterna autoritária por um genitor com traumas de guerra, confessou-me ao se ver inquirido sobre suas origens, acertara, intuitivamente, em minhas incursões de analista prático. Diante a essa informação, não mais me encontrava frente a certezas e sim a fragilidades humanas compreensíveis. Negara até onde lhe foi possível o consórcio da filha mais velha com o genro, este de origem nordestina, ainda estudante e de parco salário, portanto sem os atributos desejados para o futuro idealizado para a sua primogênita. A contra gosto engoliu o casamento, arremetendo-lhe um tapa no rosto diante o pedido dela pela cerimônia religiosa ( fato confidenciado , lamentando-se arrependido e com lágrimas nos olhos). Comparecera ao cartório de modo protocolar, sem expressar maiores sentimentos esperados de um pai. Não fez questão alguma em dissimular a contrariedade àquele enlace, em menosprezo ao rapaz e aos familiares deste. Conhecendo-o, presumi toda a superioridade ostentada sobre a parentela do noivo.
Tivera um passado de relativo sucesso na área de comunicação e propaganda, onde o tino prático, o faro ou feeling, valiam mais que títulos acadêmicos; tivera, então, uma certa e passageira prosperidade, mal empregada, pois não tinha sequer o teto para abrigá-lo. Investira na educação das filhas, mantendo-as, além de suas condições, em escolas renomadas a muito custo, ambas com cursos superiores concluídos. Vergara-se sob as modernas técnicas de comunicação, prescindindo do contato pessoal, do carisma que lhe valera considerável carteira de anunciantes na imprensa escrita em jornais e revistas. Os tempos eram outros, lamentava-se, acabando por fechar o pequeno escritório que mantinha. A condição financeira instável contribuiu para desentender-se definitivamente com os seus, sob a responsabilidade de mantê-los e não tendo mercado para seu trabalho, viu-se só. Elas ficaram juntas com o genro por ele indesejado, em minúsculo imóvel alugado.
Preterido e sem recursos, perambulou algum tempo, sendo-lhe permitido que fizesse as refeições do almoço( nas ausências do casal, por intercessões e apelos da ex companheira) e intercedendo a arrumarem local para que se hospedasse, jamais o convidando para o convívio íntimo. Foi nesta ocasião, sendo eu próximo do seu renegado genro, e a pedido deste, o acolhi em parte de um imóvel onde mantinha atividade comercial, em área desocupada. Arrumava-se com pequenos expedientes, ganhando o pão aqui e ali, sem perder, jamais, a fleuma e o ódio mal disfarçado pelos seus entes, possivelmente pelo isolamento a ele imposto. Sua gana recaía sobre a esposa, companheira de tantos anos a quem reputava muitos de seus insucessos, segundo ele mulher temperamental a atrapalhá-lo por toda a vida marital, alimentando a discórdia mantendo vivas as odiosas lembranças.
Das duas filhas, reclamava do pouco caso, reivindicando gratidão paternal, porém de tristes relatos de ambas sobre suas atitudes destemperadas na vida doméstica, infernizando a todos. Da mais velha tivera três netos, duas meninas e um menino; apenas com a primeira criança tivera contato, pois ainda morava com a esposa e cuidavam da pequena. Fora clandestinamente ao hospital no nascimento do menino, sendo mantido à distância, com indiferença. A caçula tivera uma menina, a quem jamais teve acesso. Era, definitivamente, um proscrito, em razão de seu gênio ferino, maldoso, enraivecido muitas vezes. Teve rompantes de bater nas filhas, mesmo estas já adultas, o que as apavorava. Esquecia-se de que os tempos eram outros e não admitiam atitudes severas e inadequadas como a violência física.
Da filha mais nova, bem casada posteriormente com único herdeiro de família abastada, perdeu o contato, por exigência dela, apavorada com a neurótica relação doméstica. Com o tempo, bem sucedida como empresária, afastou-se também da própria mãe e irmã, sequer comparecendo ao velório da progenitora, por questões presumidas pelo velho pai, sempre atento aos passos dos familiares, apesar do distanciamento lhe imposto.
Ele, na sua solidão, acabou por conviver maritalmente com uma jovem senhora nissey, mulher de bons modos, que o acolheu como companheiro, apesar da diferença etária e, também, contrariando a própria família nipônica e tradicional em seus costumes. Associara-se a ela, possuidora de uma pequena confeitaria, que, com suas observações e vivências comerciais, conseguiram relativa estabilidade, visto que o imóvel era dos parentes dela. Assumindo a gerência, a ajuda nos contatos com comerciantes fregueses e na própria entrega dos confeitos, com carro próprio.
Com essa pesada bagagem sobre os ombros, combalido pelos anos, vitimado por um infarto, via-se menos rígido em suas posturas, embora não abandonando o fato de sentir-se com a razão, apenas envergonhado de atitudes impensadas e inoportunas, como as agressões aos entes próximos.
Encontramo-nos, por acaso, e, na pressa, pois estava na estação do metrô acompanhando minha esposa com hora marcada com o médico, informou-me que tinha conhecimento do morte da ex esposa. Posteriormente, em segunda ocasião, também imotivada, contou-me que forte intuição o alertara do falecimento , curiosamente, visto a distância entre eles. Sabendo da existência do jazigo, dirigiu-se à administração do cemitério tendo a localização exata, confirmando sua triste previsão. Embora não escondesse suas mágoas para com a falecida, passou a encomendar uma missa mensal, e no dia do falecimento, orando por ela. Reputo a esse fato a possível mudança de atitude frente à vida, tentando, de alguma forma, pacificar-se com seus descendentes.
Como há anos distante dos seus, por mim conhecidos, não poderia servir de elo de ligação, sendo-lhe sugerido, sem pretensões de ser atendido, que escrevesse cartas às filhas. Para minha surpresa, aquilo que reputava ser recusado de pronto, veio-me a resposta receptiva, de que, inclusive por outro amigo dele, também houvera sido proposto. Surpreendi-me com seu pedido, o de ajudá-lo na redação. Pensei por instantes, e, como comumente escrevo, e, conhecedor relativo dos fatos, me prontifiquei.
No dia seguinte, após a elaboração da missiva que figuraria como um modelo para posterior apreciação e enxertos de mais minúcias, liguei a ele e lhe entreguei a cópia do que segue.
Maria,
Possivelmente você estranhará esta comunicação, não a procuro e nem à sua irmã, necessitado de nada material; apesar de já ter infartado uma vez, tenho, aos 77 anos, saúde que me permite ganhar o meu sustento, no trabalho diário. Moro bem e tenho condução própria. Como deve ser de seu conhecimento, vivo maritalmente há alguns anos com uma pessoa e nos ajudamos mutuamente, trabalhando juntos.
O falecimento de sua mãe, que por uma forte e inexplicável intuição recebi a informação, o que me fez seguir até a administração do cemitério, onde localizei o jazigo e confirmei, consternado, que acertara em minha sombria previsão. Todos iremos, é inevitável, confesso que me vi consternado com a ausência da companheira de tantos anos e mãe de minhas filhas e avó de nossos netos, a maioria por mim desconhecidos. Desde então, todos os meses, no dia de sua passagem, encomendo uma missa e compareço para orar pelo seu espírito. Tivemos inúmeras diferenças de temperamentos, o que infelizmente refletiu-se na educação de vocês, onde os extremos de um pai preocupado com a sobrevivência da família falhou, e muito, no carinho e afeto que vocês reclamavam. De meu temperamento inflexível e algo ditatorial, enérgico, disciplinador ao extremo, reconheço, hoje, os exageros. Falhei como pai carinhoso, talvez à minha maneira verti em minhas preocupações materiais o que deixei, muitas vezes, de externar em gestos mais evidentes de amor. O amadurecimento nos traz estas salutares reflexões, se a velhice nos traz preocupações com a saúde, traz-nos, também, a beleza do entendimento de reais valores da vida, como o entendimento mais espiritual do aprendizado. Erramos pensando em acertar, o certo é que agimos, na maioria da vezes, no equívoco de nossos valores, com as melhores intenções de zelo da prole e da mantença dos seus. Sua mãe foi valorosa enquanto mãe e, na medida do possível, também como esposa, ninguém carrega sozinho responsabilidades pela separação de um casal, pesam sob os ombros de ambos acertos e enganos, aliás, como aprendizes que somos eternamente. Não sou melancólico ou rancoroso, não mais, felizmente.
Talvez fizesse diferente com as experiências atuais amealhadas, quem o poderá dizer? Possivelmente este ato de escrever-lhe seja o ponto de minhas ponderações, meu real amadurecimento, antes inadmissível por mim. Entristece-me de não poder falhar-lhe pessoalmente, e, quando isso deu-se, a vi precavida e sempre assistida por alguém; não a censuro, fiz por merecer tais precauções, resquícios de uma convivência de submissão que tentei impor com menos diálogos e mais severidade. O pão sobre a mesa é importante, mas a paz familiar é insubstituível, o real alimento, nisso ainda era aprendiz.
Desde do passamento da sua mãe tento rascunhar essas linhas, mesmo sabendo que possivelmente você e a sua irmã, prevenidas com a imagem que construí, não consigam crer no alcance de minhas intenções... Isso não importa; importaria a mim eu não ter tentado, sufocado pelo orgulho, esse veneno que nos asfixia e impede de sermos mais sinceros e cordiais entre nossos iguais, principalmente com os filhos queridos, acalentados em nossos colos e razão primeira de todas as nossas preocupações. Feliz me considero por saber que vocês se encaminharam, vivem bem, são boas mães e esposas, objetivos que sempre, eu e a sua mãe perseguimos, como penso ser a meta de pais ciosos e responsáveis.
Carregamos nos ombros reedições de educação nem sempre acertadas, reproduzindo equívocos e valores que não se sustentam por renegarem as expressões mais nítidas de afeto que possam gerar pessoas equilibradas emocionalmente. Um coisa é certa, com todos os erros, demos sempre mais do que recebemos, numa evolução constante.
Caso queiram saber de mim, meu celular é:xxxxxxx, entenderei se não me procurarem, mas saibam que as amo e penso em vocês todos os dias de minha caminhada.
Seu pai.
( ligou-me agradecendo e fazendo as necessárias alterações , às quais não tive acesso, acrescentando o que achava necessário, mantendo, segundo ele, o bojo da carta, e que já encaminhara para as destinatárias. Parecia aliviado e satisfeito).
* Publicado em livro na Antologia Contos de Outono, editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ,março de 2018.