O CANDIDATO DO POVO*
O que teria feito aquele simpático pernambucano de tez amorenada, meia estatura, sorriso cativante e cabelereira cheia e salpicada de neve, a ser picado pelo fascínio e enveredar-se pela política ? O certo é que a decisão caiu como uma bomba na rotina de seus familiares, pelo inusitado. Por que não fazer uma escala, algo como candidatar-se a vereador para se inteirar dos meandros, e não sair de supetão, açodado, direto para o cargo de executivo do município? Besteira, não vale a pena ser parte dessa súcia, são uns beócios que se reúnem para discutirem nada de importante, parece título honorífico ( não necessariamente nessas palavras, aliás, vocabulário desconhecido pelo pretendente e dono de um bar restaurante naquela pequena cidade). A mulher, clara e gorda, extenuada às voltas com suas panelas, e cozida a pele clara nos óleos comestíveis, resignada e não dada a contrariar as preferências do marido, às tampas com seu gênio por décadas, de prole grande, não se ocuparia de deter aquele burro empacado, não perderia seu tempo, seria inútil. Se insistisse em contrariá-lo seria o pretexto para a previsível e malfadada tentativa eleitoral; que colhesse, ele, o malogro de sua vaidade. Na verdade colheriam todos eles o resultado malogrado, sabia-o bem a pobre, todavia, tentar dissuadi-lo era dar murros em ponta de faca. Os familiares ocupavam-se dos afazeres do estabelecimento, não necessitando de terceiros para os serviços, dando ocupação a todos, até mesmo à sua idosa mãe, sempre às voltas com o descascar das batatas, resmungando de que o mundo parecia ser uma montanha daquelas tuberosas. Um pequeno exército com as mãos à obra no cotidiano daquela esfumaçada cozinha com fogão a lenha e tachos imensos fumegantes. A vida, no início de cada dia, uma rotina interminável de fazer comida e servir nas mesas ou no encher de marmitas para as famílias mais abastadas em entregas em domicílios.
Pelo prognóstico do sonhador a eleição seria ganha com facilidade, era popular, mais que os demais concorrentes: um dentista, um relojoeiro, um professor aposentado e um lojista de pequena loja, inexpressivo junto à população. Na sua teoria todos eram distantes do convívio cotidiano com a população, de predominância rural. O doutor já tentara a vereança e fora mal sucedido, conhecido pelos urbanos com poder econômico de restaurarem, vez ou outra, suas cáries; o relojoeiro sem carisma, apagado, talvez o concorrente mais fraco; o professor gozava da estima de várias gerações de alunos e da simpatia de seus familiares, contudo, muitos já se haviam mudado da região, assim, um a um, na sua retina, seriam vencidos pela sua popularidade. Restava ele, o mais conhecido dentre os postulantes, que, aos sábados, debandavam de seus sítios para o comércio da pequena localidade, indo almoçar em seu hospitaleiro restaurante, julgava conhecê-los, no trato, a todos.
Seus olhos ambiciosos brilhavam diante a isso, pois não contavam os políticos locais com o improvável até então, surgiria como a grande surpresa. No decorrer da campanha, viu seu movimento crescer de forma assustadora, chegavam, aos montes, na carroceria de caminhões, para as refeições, sempre com um afago nas costas, sem pagarem nada pela cortesia disfarçada em adesão. Os familiares viam aquilo com aflições, mais serviços e menos faturamento, avolumavam as contas com os fornecedores... A isso tirava de letra o enfeitiçado pelo Poder, tudo se resolveria posteriormente à assunção ao cargo, que não se amofinassem com aquilo, eram as suas armas de convencimento, sua palpitante campanha. Tinha, em relação aos demais pretendentes, o melhor material, a comida, sem o alimento ninguém sobrevive, conjeturava com seus botões. De que adiantariam os empolados discursos oportunistas direcionados em períodos de cata aos votos nas periferias esquecidas dos arredores ? Nestas épocas compareciam por ali deputados e senadores, com estardalhaço para apoiarem seus correligionários, todos os demais candidatos a eles vinculados. Não a ele, concorrente independente, sem vínculos com a politicagem institucionalizada, sem rabo preso com as raposas oportunistas e conhecidas. O povo daria o troco aos mesmos de sempre, carimbados e notórios politiqueiros de ocasião, fugazes como os foguetórios soltados em seus comícios. Enquanto apostavam em seus “santinhos” para o corpo a corpo, ele apresentava argumentos mais convincentes, sua culinária popular e apetitosa, numa peleja entre a palavra vazia e o estômago, nisso apostava suas fichas, cioso da inevitável vitória, para o desaponto de muitos galhofeiros a menosprezarem a sua pouca experiência em tais assuntos, ao que respondia, ter a vivência com o povo, este sofredor e sábio, que decide as eleições !
Vê-lo abraçado aos trabalhadores rurais, degustando cafezinhos, servindo-os, ele próprio, em suas mesas, rindo e conversando de igual para igual, atitudes que jamais fora antes vistas por aquele povo humilde em um candidato, aliás, em um igual a eles. Tudo concorria para um desfecho inevitável, uma explosão de votos e a consagração do postulante de forma avassaladora...
Abertas as urnas, o nosso “popular” candidato teve retumbantes 14 votos, insuficientes para eleger um vereador na comunidade. Ferido de morte em seu íntimo, endividado e desconfiado da traição até dos mais próximos. Tempo depois, não conseguindo conviver com sua frustração, mudou-se da cidade que tanto amava, fechando seu estabelecimento tão frequentado pelo populacho.
Este fato verídico, traz-me, sempre, as acertadas conclusões de um médico e psicólogo, Wilhelm Reich, que retrata em sua obra, Escuta, Zé Ninguém, que o homem comum, desacreditado de si mesmo e em sua força coletiva, deposita nos filhos da burguesia, de discursos inacessível ao seu mediano alcance, sua confiança. Pois dos iguais a ele restam sinceras desconfianças de sua inferioridade.
Lembra-me, também, a propaganda de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1989, do slogan “ Um brasileiro igualzinho a você”, narrando a origem de retirante e operário, que acabou elegendo Fernando Collor de Mello, um embuste da oligarquia nordestina, diplomado, a fascinar o conservadorismo do eleitorado.
* Publicado em livro na antologia TENHO DITO, DATA VENIA, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ, lançamento fevereiro de 2018.