SEGREDO.


Quando ao final do inverno, a vegetação demonstra os efeitos sofridos durante toda a estação de frio. A paisagem em seu conjunto não perde a beleza, beleza que já conhecemos de outros invernos e que nos faz lembrar de forma sutil mais intensa o que ficou preservado em nossa memória, e se traduz em vontade de rever os lugares, e até mesmo de levar conosco pessoas, para conhecer e partilhar destes singelos espetáculos da natureza que acabam sendo palco, moldura, ou pano de fundo para histórias que nos confundem com sua grandeza, sua beleza, e também sofrimento, mas ao final, é sempre uma lição de vida.
 Nesta viagem, quando se deixa o centro da cidade em direção ao interior as primeiras paisagens são dos sítios e fazendas, os campos de plantação com o chão ora vermelho ora verde em mais de um tom, as invernadas com gado e uma ou outra árvore frondosa e solitária fazendo sombra, as casas rurais com suas chaminés soltando fumaça o tempo todo. Pode se ver até os animais, ouvir os sons característicos destes, e este conjunto parece ser a forma de vida natural e normal, a ponto de quando adentramos a mata de reflorestamento com tantas árvores iguais, só mesmo o leito da estrada, a topografia do terreno, as formas das nuvens no céu, parecem ter alguma diferença.
 Depois de algum tempo de viagem chego a um acesso secundário na estrada, uma porteira de madeira indica a entrada de uma fazenda, e é ali o meu destino. Ultrapassada a porteira têm ainda um bom trecho de reflorestamento a percorrer até que mude a paisagem, e possa então me sentir próximo de outras pessoas.
 Já é final de tarde quando cheguei, o sol põe seus raios sobre a grama que mesmo seca pelas geadas ainda brilham em sua cor de cinza, ou de palha, o perfume já é outro, há variedades de árvores ornamentais e frutíferas, têm animais, a vastidão dos campos me dá vontade de correr até não mais agüentar, e então deitar e rolar pela grama como se ainda fosse uma criança a quem isso é permitido sem nenhum constrangimento.
 Com o olhar ao longe na divisa das terras da fazenda onde recomeça o reflorestamento e também passa o rio Itararé, que denominado pelos índios Tupi-Guarani e que se traduz “pedra que o rio cavou”, ali está ele numa profundidade de mais ou menos quarenta metros e a céu aberto, num abismo de paredões de pedras que não permite acesso fácil e seguro para se descer até suas águas. As árvores enormes e centenárias que nasceram lá em baixo têm o seu topo ainda abaixo do nível dos campos da fazenda. Esta fenda no solo com essa profundidade e mais ou menos cinqüenta metros de largura, uma extensão de mil metros aproximadamente, é característica do rio Itararé.
  Nesta fazenda há muito tempo passado, o senhor Adão que era trabalhador da fazenda morava num ranchinho com sua família, após sua morte a viúva dona Genuína senhora já de idade continuou vivendo ali com sua filha Olinda que era doente, Olinda tinha nascido com leve deficiência mental, mas era qualificada pelas pessoas daquele lugar como retardada. Estava com vinte e oito anos de idade quando desapareceu. Por causa de sua deficiência, dos cuidados que despertava, esse desaparecimento causou muito interesse nas pessoas, foi muito propalado e muito foi feito na procura por Olinda, mobilizou-se polícia, bombeiros e pessoas voluntárias por vários dias até que foi considerada pelas pessoas como morta, e apenas dona Genuína, a mãe, mantinha viva as esperanças, como se fosse o destino conspirando para que ela pudesse testemunhar a força da vida, nessa história.
 O desaparecimento ocorreu numa manhã como tantas outras, e na rotina do lugar, dona Genuína já estava a trabalhar em sua horta no quintal da casa, tão absorta em suas atividades que não viu quando Olinda foi encontrar-se com o cavaleiro que silenciosamente e rapidamente a colocou na garupa de seu cavalo e seguiu em direção ao grotão na divisa da fazenda. Chegando a beira do precipício, onde tudo estava preparado, havia materiais como cordas e trouxas de roupas, e imediatamente aquele homem foi amarrando as cordas nas árvores e foi descendo com Olinda para o fundo do precipício. Depois de horas de muito esforço chegaram ao final da descida. A visão do lugar era incrível, bandos de borboletas de várias cores e em grandes quantidades, árvores cujos troncos deviam ter um metro e meio ou dois de diâmetro.
 O rio Itararé naquele ponto era bem pequeno, mais parecia com um riacho que em alguns lugares se podia atravessar caminhando por cima das pedras, e naquela direção da descida, na outra margem via-se uma queda d’água em cachoeira de tamanha altura que chegava lá em baixo apenas uma nuvem d’água, e com o efeito dos ventos a nuvem d’água perecia dançar de um lado para outro, e onde caía a água lembrava uma praia com areia limpa. Por todos os lados paredões de pedra com muitas cavernas, nas encostas dos paredões que acumulavam terra havia vegetação, muitas palmeiras, muitas flores, e variedades de árvores. A umidade muito grande tornava frio o lugar, os raios do sol eram sentidos apenas no meio do dia, a sensação de estar em outro mundo era para Olinda uma realidade, a sua condição mental nesse momento foi sua maior parceira, pois assim não sabia sentir medo, não planejava nem premeditava suas ações, apenas vivia momento pós-momento, e esses tão diferentes que ela os vivia com toda a intensidade, e quando se deu conta estava só, aquele homem já tinha ido embora deixando-a naquele lugar.
 No local de sua descida Olinda encontrou um pacote de roupas e comida, de posse deste procurou e encontrou uma cavidade na rocha que lhe pareceu um abrigo ideal, e ali se acomodou, este local passou a ser sua casa, precariamente tinha naquele local tudo que necessitava para viver, a sua condição mental ignorava a solidão, os pequenos animais silvestres e os pássaros eram seus companheiros nos alimentos e nas horas de algazarra, quando o sol adentrava aquela fenda e refletia nos paredões de pedra, era mais um dia que se contabilizava naquela história de espera e preparação de vida que somente uma mente especial suporta.
 De cada três ou quatro dias e durante meses, no mesmo local Olinda encontrava pacotes de comida e roupa que eram deixados pelo cavaleiro que a levou para aquele lugar. Neste gesto podia sentir que apesar do absurdo ato, o cavaleiro que era também morador da fazenda com sua família de esposa e três filhos estava perdido em suas intenções e ações. Não sabia como resolver uma situação que assumira proporções assustadoras e que a cada ação parecia ficar pior. Olinda ficara grávida, nas condições de ambos, como esconder, ou como resolver, foi então que o cavaleiro teve a idéia de dar sumiço em Olinda, porem não queria sua morte, e a opção foi escondê-la e fazer segredo dessa situação até quando pudesse.
 As águas do rio Itararé passavam pelo segredo, assim como o tempo passava para a gravidez de Olinda, a barriga crescia de forma tão despercebida por ela como por qualquer humano, mas a vida que tudo supera rompe as barreiras e aflora como uma flor em botão num campo propício a elas, num ambiente aparentemente purificado pela natureza onde forças divinas agem com plenitude em favor da vida. Daquele parto, uma vigorosa e forte criança, um menino, vem ao mundo, em segredo e no segredo.
 Os dias passavam e a criança ganhava vida minuto a minuto, a mãe agora estava irreconhecível, alguma força a conduzia, parecia tudo saber sobre uma criança, tinha pela primeira vez em sua vida a alegria de viver. O pai, aquele cavaleiro ainda nada sabia sobre o nascimento de seu filho, nunca mais tinha descido até onde estava Olinda, mas quando o menino tinha vinte e oito dias de vida e por coincidência no dia vinte e oito de agosto, numa manhã ensolarada ele resolveu descer até o segredo, e nesta empreitada e em dado momento a corda em que se prendia soltou, e o inevitável aconteceu. Naquele tombo sofreu tantos ferimentos que somente teve tempo para ver o filho nos braços de Olinda, e com sorriso no rosto morrer.
 O dia vinte e oito de agosto é feriado no município, e na fazenda o pessoal não trabalha, assim um grupo de moradores da fazenda saiu para passear a cavalo, e foi quando viram parado a beira do grotão um cavalo selado e sem o cavaleiro. Foram até lá, e quando chegaram se depararam com as cordas amarradas às árvores e resolveram descer para saciar a curiosidade. Quando o primeiro chegou lá embaixo teve tamanho choque ao deparar com o cavaleiro morto, com aquela mulher que todos julgavam morta há quase um ano e agora segurava um bebe. Após o susto e buscando compreender os acontecimentos, aquelas pessoas num esforço conjunto tiraram todos daquele lugar.
 As verduras daquela horta pareciam muito saborosas, os canteiros organizados demonstravam o zelo da jardineira, a dona Genuína que inconsciente transferiu para aquelas plantas o carinho, o zelo que tinha para com a filha. Preservava a esperança de rever a filha que de alguma forma ela sabia estar viva, e foi quando regava os canteiros à tardinha quando o sol se vai, e as preces de agradecimento pelo dia que se finda são ditas com fervor, dona Genuína virou-se e viu sua filha amada agora com seu neto nos braços. Naquele momento não importava pra ela saber o que havia acontecido, queria abraçar sentir e acreditar no que estava acontecendo, as lágrimas turvavam sua visão cansada, e de joelhos sobre a grama seca pelo inverno ela agradecia, e testemunhava o poder da vida.
 De volta de minha viagem, chegando à cidade e ao comentar sobre a história que me foi contada na fazenda, na tentativa de denominar o local do acontecido, eu o chamei de segredo, mas para minha surpresa muitas pessoas já conheciam o segredo, a dúvida é apenas se conheciam o acontecido ou o lugar.


                                        Com concentimento do Autor:
                                                                                            Paulo Cezar Rozeto.

Que apesar de ter partido, continua vivo em nossos corações.