O Grá

O GRÁ

Graciliano – o Grá – tinha a mania de ostentar grandeza. Mal os seus rendimentos davam para comer com a mulher e os filhos, mas fazia ginásticas, dava saltos mortais para todos os lados contanto que estivesse sempre em evidencia. Havia de comparecer a reuniões, festas sociais e políticas, e bem apresentável. Não tinha raiva de pobre, mas detestava pobreza. Não entendia como se podia ser pobre, uma coisa feia, feia e humilhante.

Farejava festas e mesmo sem lavadeira e engomadeira, tinha que estar presente, com terno limpinho e bem passado. A mulher que cuidasse da casa, dos filhos e, rigorosamente, de suas roupas. As calças haviam de estar com os vincos certinhos e as golas e os colarinhos sem vestígios de ruga. A coitada já vivia esfalfada de tanta luta e tanta exigência. Mesmo grávida, com o barrigão pelos ares, tinha que se curvar sobre a mesa de engomar e secar a boca de soprar as brasas do ferro de engomar para deixar, brilhando a ilustre roupa do Grá.

Considerava a mulher uma sua serviçal e não admitia desculpas no tocante a qualquer pequeno defeito nos seus ternos. Queria-os escovados, limpos, na maior correção. Até o lencinho branco, de seda do bolsinho do paletó havia de estar dobradinho e com as quatro pontas bem iguaizinhas aparecendo. E nem se falasse nos sapatos que teriam de estar engraxados e lustrosos.

Dona Margarida havia de largar tudo, inclusive o almoço dos filhos para cuidar religiosamente da farpela do marido que, além do mais lhe tomava os restinhos da loção que ela guardava para uma ou outra saída casual. Dona Margarida já não agüentava mais as impertinências do marido, um inútil, vaidoso, e abobalhado. Não tinha prestigio político nada sabia além da rotina do emprego da Prefeitura, um empreguinho do qual não saia. Melhoria, nem se falava, a não ser quando havia um reajuste geral. Havia de dar um jeito naquela vida de escrava. Os dois ternos velhos não suportavam mais o vai e vem do ferro de engomar, Estavam prestes a se puir. E seria um Deus nos acuda.

- Olha, Grá, essas tuas roupas não agüentam mais ferro e nem eu suporto mais viver debruçada tirando pregas de tuas roupas. Cuida em arranjar outras ou então vai logo te preparando para o pior. Não tardará em se puírem.

- Nem me fales nisto. E usa mão leve. Não posso perder reuniões e não tenho como comprar outras. A Prefeitura é uma miséria, não da um aumento e quando o faz é para beneficiar os parentes e os chaleiras.

- Esta tua conversa é muito velha. O que há é que não fazes por onde merecer. Isto sim. E prepara-te. As golas estão se puindo. E já estou de braços doidos. Parece que não estás vendo meu sacrifício.

- Será que não queres zelar o teu marido, ajudando a conviver com a nata social da cidade?

- Olha, chegou a hora de ser franca contigo. Estou para ir para casa de meus pais com os dois meninos. Não me casei para ser escrava de ninguém e esta tua vida de maníaco me enjoa. Arranja logo quem passe ferro. Eu, mais não! As golas estão se puindo e não quero que seja em minhas mãos. Já cansei de tanto alisa, alisa e de tanta reclamação.

- Tens paciência, mulher, são coisas da vida. Nasci para ser rico ou pelo menos para levar vida de rico.

- Explorando minha paciência, mas não. Já estou saturada dessa tua vaidade de doido. Por que não baixas logo a cabeça e toma o teu verdadeiro lugar. Um liso, com um paletó velho já se puindo e metido a cavalo-do-cão.

- Seria minha maior infelicidade, meu maior infortúnio. O que iriam pensar de mim, quando estou no auge da contemplação privando dos melhores ambientes sociais e políticos.

Com menos de um mês os paletós se puíram. Grá levou-os ao alfaiate para mudar as golas. Não havia alternativa.

- Não, não tem mais jeito. Só outros. Compre logo uns ternos novos. Um homem como o senhor, cheio das granas e ainda pensa em fazer um aproveitamento desta ordem. Para que quer o dinheirão. Bote as notas para fora. Quer logo ver uns cortes de casimira? Tenho-os de primeiríssima e por preço antigo.

- Não, não, vamos deixar para depois. Também aqui não se tem muito aonde ir...

- É, mas às vezes, um convite, uma missa solene, um enterro. Sabe como é, se o senhor não comparece ficam reparando. Outro, não, mas logo o senhor das altas esferas. Pelo menos um terno.

- Volto depois. O senhor tem razão. Não posso faltar a certos atos e solenidades.

Intimamente Grá estava arrasado, aniquilado. Não dispunha sequer do magro dinheirinho da feira e aquele filho de uma luvana querendo vender um terno novo. Se aquele safado soubesse como ando nem tocaria no assunto. Cadê que se prontificou a fazer o terno fiado. Mas pensa, pela minha própria ostentação, que sou um sujeito rico e quer é dinheiro. Só se for buscar em casa do diabo. A mulher é que está certa. Se eu fosse um sujeito humilde compraria fiado ou a prestação, mas sou um pelado metido a besta e o resultado é este. E agora para me sair desta, vai ser muito difícil. Logo em cidade pequena em que se sabe e se vê tudo. Cada um deve ser mesmo o que é. E o pior é que os joelhos das calças estão se puindo também. Não vestir paletó, passa, mas sem calça, não há como. Só haverá uma saída, que é mudar de cidade. Mas, como, se o ganha pão é aqui mesmo.

- Nunca pensei mulher, que essas roupas durassem tão pouco. Pois não é. Apenas seis anos de uso...

- Duraram até demais e acabaram com as minhas forças. Deveriam ter se acabado muito antes.

- E o que vou fazer para ir ao emprego. Na Prefeitura exigem paletó e gravata.

- Compra uma roupinha de brim e mete-se no teu lugar. Pobre metido a rico é isto mesmo. Cai nestas. Afunda-se antes de tempo.

Com um ternozinho de brim barato, Grá entrou na Prefeitura, desconfiado. Parecia que todos olhavam para ele, avalizando-o dos pés à cabeça.

- Vejam só como seu Grá está tão mudado. Andando no brinzinho pardo.

- Também a casimira dele já estava muito surrada.

O Grá notava que havia comentários a seu respeito e deveria ser em face da mudança de farpela. Tomou a iniciativa, então, de dar uma satisfação. O clima quente da estação seria um bom motivo.

- A gente só aprende vivendo. Sofri muito mormaço antes metido naquelas roupas quentes. Foi a mulher que me advertiu e quase me obrigou a mandar confeccionar este terno de brim. E que diferença. Uma roupa fresca, arejada, leve. Quando tempo perdi e só por falta de idéia e lembrança! Nunca mais visto roupa pesada.

Mas já estávamos tão habituados a vê-lo enfatiotado na casimira, que estávamos estranhando. Sabíamos que alguma coisa estaria acontecendo. Além disso, casimira está custando hoje uma fortuna.

- Não, por isto não. Por mim, neste particular tanto faz como tanto fez. Dinheiro só serve mesmo para satisfazer desejos. No entanto, despedi-me de roupas grossas e quentes. Nunca mais. Daqui por diante é no brim e cada vez mais leve e arejado. Creio que perdi muitos anos de vida.

Dias depois correu a notícia trágica. Morrera subitamente o Sr. Prefeito, chefe do Grá. E agora, sem uma roupa preta ou escura para acompanhar o enterro. O paletó mais escuro com a gola esfarrapada e a calça com os joelhos se puindo. E não podia faltar. Seria uma falta imperdoável. Ir de roupa de brim, quando todo mundo ia de roupa escura ou preta. Uma gafe dos diabos e uma vergonha. E agora, mulher? O que diabo vou fazer. Como é que aquele desazado vai morrer logo numa fase desta. E o enterro é amanhã à tarde. Enterro de rico. E eu somente eu de roupa clara e logo de brim.

- Dá-se um jeito, Grá. Tua cabeça não da para nada. Juízo mole. Vai comprar um pacote de tinta de tingir e amanhã te darei um terno preto.

- És uma santa, menina. Deus te conserve.

E dona Margarida meteu a roupa na tinta, colocou-a para enxugar e pela manhã passou ferro.

- Um brinco de roupa, Margarida. Imagina se não tivesse casado contigo.

E a tarde seu Grá estava pegando na asa do caixão. Precisava dar uma demonstração de amizade e prestígio.

Por dentro sofria a maior decepção de toda sua vida. Ninguém estava de preto ou de roupa escura. Cumpria-se um pedido do morto e da família. Não queria luto no seu enterro, pois tornava o ato mais triste ainda.

E Grá era como um pingo de tinta nanquim numa toalha branca. Não sabia onde se socar. Era um desinformado de tudo e por culpa exclusiva de suas manias de riqueza.

Emocionado, e, em parte, feliz com a idéia da mulher, nem se lembrava do trabalho.

- Como é, Grá. Não vais hoje a Prefeitura.

- Que coisa, mulher. Nem me dava conta disso. Minha roupa.

- Está no teu quarto onde deixaste.

Quando Grá viu o pretume, assustou-se. Ir para o trabalho com a roupa do enterro e aquele pretume de coisa tingida de novo. Que horror. O enterro foi ontem.

- Chega mulher, me socorre. A roupa tingida dava certo para o enterro e agora, como é que vou trabalhar feito um urubu. Nossa mãe. Pobre é uma desgraça! E o pior é um pobre metido a rico. Só passa decepções. Imagina Margarida, ir à repartição, com a mesma roupa do enterro.

- Está visto que és mesmo a maior incapacidade criativa que conheço.

- Como, Margarida. Julgas-me tão burro assim?

- Vai à cidade e me compras uma tira de pano preto. Farei uma tarja para colocar em tua mesa em sinal de sentimento. De luto. Então estarás de preto pelo mesmo motivo.

- És uma mulherzinha formidável!

Grá entrou na Prefeitura como uma tarja. Preto como um frango de urubu. Lustroso. E notou que todos olharam para ele com admiração.

- O que é que há seu Grá?

- Uma homenagem ao grande chefe!

- Mas ele odiava a cor preta. É melhor ir para casa trocar de roupa e faça o favor de retirar essa bandeirinha preta e agourenta de cima da mesa. É uma desatenção ao pedido do chefe. E vá para casa trocar o terno. Nada de luto, nada de preto aqui dentro.

- Chega Margarida. Outra decepção. É proibido entrar de preto na Prefeitura. O homem não tolerava preto. Nunca empregou um negro e o que lá existia, demitiu. Tira depressa esse pretume do meu terno.

- Ah! Isso não. É impossível. A tinta preta é indelével.

- E então?

- Toma meu novo conselho.

- Qual. O que?

- Veste o terno de casimira velho. É a solução. Nesses dias de tristeza, ninguém vai reparar. Está puído na gola, mas isso passará despercebido.

Entonou-se e voltou. Entrou na sala, fazendo-se de ignorado e indiferente.

- Olá seu Grá. Anda com frio num tempão quente deste?

- Que nada. Saudades. Coisa impossível da gente se livrar. Quando aperta faz o que quer. Minha mulher ficou revoltada, mas, tive que contrariá-la. É muito difícil esquecer os velhos amores.

Pedia às doze mil virgens que o expediente terminasse para ver-se livre dos olhos dos curiosos.

- É! Eu mesmo gosto do meu pijama velho já todo puído. Quando não me deito com ele o sono custa a chegar...

- Pois não é. Meu guarda-roupa está lotado de ternos, mas não resisti à tentação de me entonar nesta jóia.

- Posso propor-lhe uma coisa?

- Pode sim.

- Tenho amanhã que comparecer a uma festinha de aniversário e estou sem poder ir à falta de um terno adequado. Amanhã passarei lá e me emprestará um. Só por uma noite. Nosso corpo veste o mesmo figurino. Creio que não me vai negar.

- Olha, é uma pena, mas tenho uma horrível superstição. Emprestar roupa dá uma azar dos diabos. Por isto, desculpe-me.

- Tenho que mandar confeccionar um terno e gostaria de escolher um padrão que me agradasse da melhor forma. Creio que não irás me negar o prazer de ver os teus, pra uma escolha acertada.

- É muito pior e além, disso não gosto que façam roupas iguais às minhas.

- Mas, Grá, que falta de companheirismo. Pois se queres ver meu guarda-roupa, vai lá quando entenderes.

Coitado do Grá, não se agüentava mais com a tradição de riqueza. Foi para casa revoltado e decepcionado.

- Vem cá, Margarida. Olha, teus conselhos foram excelentes, mas tudo deu errado. Acontece tudo exatamente o contrário de minhas previsões. Vamos embora desta terra e para bem longe. Não tenho mais jeito de comparecer à Prefeitura. Ali só tem patife, depois que o chefão enterrou-se. Está todo mundo botando as unhas e a cara cínica de fora. Não deixam em paz as minhas roupas. Todo o dia tem um sacrísta para fazer apreciações. Lá não irei com este abafador e nem com o terno preto. E agora...

- Ora, Grá, já está tudo resolvido. Troquei teu terno preto por um de brim azulado. Só que me parece um pouco apertado para teu corpo.

- E com que quem?

- Foi do defunto Epaminondas. Morreu, deixou-o e o filho estava sem poder comprar luto. Ficou exultante. Vem dar uma prova.

Grá apressou-se em vestir o novo terno. Era de fato um pouco justo, mas dava para quebrar o galho. O maior defeito era ser um tanto comprido. As mangas do paletó quase lhe cobriam as mãos, mas havia de disfarçá-las.

No dia seguinte, depois de elogiar dona Margarida, saiu para o emprego. Queria saber se ainda iria aparecer um safado para fazer reparos. Entrou assobiando baixinho, querendo solfejar uma canção da moda e foi logo topando com o pior dos safadórios da Prefeitura. Teve logo uns arrepios. Iria sair indireta.

- Muito bem seu Grá, de terno novo? Está botando o guarda-roupa pra fora. E é engraçado, esse terno é igualzinho um de seu Epaminondas que foi enterrado na semana passada. Só que ele era um pouco mais alto, mais magro e tinha os braços compridos. Mesma padronagem e o formato da gola o mesmo. Era também de três botões. É por isto que não faço e nem nunca fiz roupa igual as dos outros. O homem morreu e fica-se pensando que o defunto era mais magro.

Seu Grá não deu atenção nem resposta. Apenas teve pena de não possuir uma arma para botar os fatos de um na poeira.

- Calma muita calma, Grá. Nada de violência. Estás pagando pela tua vaidade de querer ser rico sem ser. Vou fazer economia para comprar roupas novas e decentes. Deixa que me vire.

- Virar como, Margarida?

- Já estás pensando no pior. E se fosse o que estás pensando, não seria melhor do que andares humilhado.

- Tem razão, mulher. Todo caminho da na venda.

- Há, é assim, não é, pois queria somente experimentar-te. Então para andar bem enfatiotado não te incomodaria se eu me prostituir-se?

- Nada disso. Apenas não queria discordar. Tens sido tão boa para mim que até admitiria esse teu sacrifício. Afinal de contas ninguém iria te arrancar pedaços. Parece que não sabes ainda o quanto vale um terno novo.

E na semana seguinte, o Grá entrou na Prefeitura, enfatiotado numa roupa nova...

Em 29.10.1986

João Henriques da Silva

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João Henriques da Silva
Enviado por gavinha em 03/12/2017
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