O moleque Sarampo

O MOLEQUE SARAMPO

O moleque Sarampo nascera mesmo sem sorte. Filho de pai ignorado, e, a mãe fugira com um malandro qualquer, deixando-o em casa de uma vizinha. - Seria apenas por poucos dias, - dias que nunca terminavam e Sarampo teve que se valer da rua para sobreviver.

Largara a casa da vizinha, onde era tratado com desprezo e cascou-se na rua para que desse e viesse. Dormia aqui e ali, onde o sono o pegava, como um bicho do mato. Depois de algum tempo uma preta velha levou-o para casa e deu-lhe um cantinho para dormir. Mas teria que continuar a pedir comida, alguns níqueis e roupas velhas para vestir. Dava graças a Deus ter onde se recolher quando a cidade dormia.

O pouco dinheiro que lhe davam, entregava religiosamente a madrinha Preta, como a chamava. E quando sobrava comida, chegava com ela em casa, para a madrinha.

Tinha sorte numa coisa; não adoecia. A vida crua que levava era-lhe uma vacina polivalente. Passou a entender que a madrinha Preta passava fome, não tinha fumo para o cachimbo de barro e às vezes nem a panela ia para as trempes.

Dia inteiro com o fogo apagado. Ele poderia sim, passar fome, mas aquela velhinha não poderia agüentar. E começou a esmiuçar a casa. O quarto onde a madrinha dormia era uma lástima. Uma cama velha forrada com uma esteira de carnaúba, um lençol velho aos pedaços. E naquele Cariri frio de julho, como poderia dormir aquela criatura magra e cansada. Sarampo pensava naquilo tudo, enquanto roía um pedaço de pão que lhe haviam dado e madrinha Preta comia os restos que Sarampo lhe entregara numa lata de doce usada e sem tampa. Aquela miséria lhe obrigava a pensar, pensar no que haveria de fazer para sair daquela ruína.

O que lhe davam era tão pouco e havia ainda de suportar as recriminações: – Por que não vai trabalhar moleque vadio, não tem pai nem mãe, seu preguiçoso? - Doía-lhe como uma pancada na cabeça aquela situação infeliz. Nem podia atinar porque ainda viviam os dois. Ninguém acreditava nele e cada dia saía mais espantado e desiludido. Os dias amanheciam vazios e mais sombrios ainda. Chegou a pensar em furtar, levar para casa um pouco do muito que via nas mercearias: Feijão, farinha, arroz, um pedaço de carne...

No entanto, pior seria se fosse apanhado e recolhido. Não teria mais quem pedisse para a madrinha Preta. E como iria ela viver. Teve, então, a idéia de pedir nas casas comerciais, e nas feiras. Apanhara nos terrenos baldios, sacolas de papel abandonado. E lá ia um punhadinho de feijão, um pouquinho de farinha, um naco de carne do Ceará, uma colher de café e outra de açúcar.

- “Pra madrinha Preta que estar morrendo de fome. Ela não pode andar, nem trabalhar e está tão magrinha que faz dó”.

Teve mais sorte. Chegava a casa com um pouco mais e que não era resto de comida.

Não se esquecia de passar pela padaria e pedir um pão ou bolachas quebradas. Tudo servia. De volta, nas casas, depois do almoço e do jantar pedia alguma coisinha mais. Queria já crescer para arranjar trabalho e deixar de pedir.

A madrinha teve uma lembrança:

- Vai pedir também em casa do padre, do médico e do Dr. Juiz. É tudo gente rica. Quem sabe, Sarampo. E podem até te arranjar um emprego.

E teve sorte. O médico chamou-o para zelar o consultório. Pagaria por semana. Mas Sarampo teve que explicar.

- Sim senhor, seria tão bom, mas tenho que pedir esmolas para madrinha Preta que me cria. Uma velhinha que vive com fome. Peço para ela comer. Ela e eu.

- Tem nada não. Toma dinheiro e vai comprar alguma coisa. Deixa em casa, e vem para o trabalho. Varrer, espanar, fazer mandados.

- Vou ligeiro e volto correndo!

Saiu aos pinotes como um doido. Nem saiba o que fazer com aquele dinheiro todo, bem apertado na mão. Entrou em casa como um foguetão ou um busca-pé em dia de festa.

- Está aí, madrinha. O doutor me deu pra gente comprar comida e me deu um emprego. Vá à senhora comprar aí na bodega do vizinho. Hoje a gente vai almoçar do bom e do melhor. Vou correr para o consultório do doutor.

- Como é bom ter juízo. Deu certo o que a senhora me disse. Chego para a comida. Não se esqueça de comprar sal e fumo para o seu cachimbinho de barro. E pão novo, o dinheiro dá!

Sarampo entrou no consultório do doutor Albino como se fosse um empregado graduado. Aquilo sim era vida de gente.

Doutor Albino chamou a enfermeira e mandou-a dá sabão e uma toalha a Sarampo. Despachou para a loja a fim de comprar duas calças e duas camisas prontas e um par de botinas. Queria Sarampo limpo e apresentável. Depois do banho, veio-lhe a surpresa. Roupas novas. Já era luxar demais. Dalí fizera um juramento, só sairia empurrado. Tocou a vassoura, varreu tudo, espanou, passou mais um pano nos móveis, mas sem se esquecer de olhar para a roupa nova, em que estava entonado e na outra que estava guardada.

Tudo pronto, foi ao jardim, passou para o quintal e limpou de canto a canto. Três dias depois, era somente conservar.

- Sarampo?

- Pronto seu doutor.

- Donde tirastes esse nome engraçado. Quem te botou?

- Foi o povo mesmo. Eu acho que era de tanto andar pedindo. Sarampo não é doença que pega no ar?

- E o teu nome mesmo, como é?

- Abílio. José Abílio. Mas é melhor me chamar mesmo de Sarampo. É mais fácil e todo mundo já me conhece assim. Sarampo...

Sarampo era ligeiro como um raio. Parece que quando ia já estava de volta.

- Vai comprar cigarro, pacote de gases, esparadrapo, algodão.

Nem carecia de nota. Tinha boa memória. Quando a enfermeira aplicava injeção ou fazia qualquer tratamento, Sarampo estava por aí, farejando e tentando aprender.

Algum tempo depois já era ajudante da enfermeira. Fazia curativos leves e achava graça quando o cliente gemia:

- Deixa de ser mole. Sara logo. Pior é se fosse para cortar a perna ou arrancar a língua... O doente terminava rindo.

Quando Sarampo andava pela rua ou qualquer local e via um sujeito magro ou gordo de mais, logo aconselhava. Vai consultar o doutor Albino. Ele tem remédio para tudo. O magro engorda e o gordo emagrece. E tem uma enfermeira que vale a pena ver. Vai lá enquanto é tempo, mesmo que seja só para ver a enfermeira... É mais bonita do que eu.

Com algum tempo ninguém mais reconhecia a madrinha Preta. Vestira os ossos da carne, pisava firme e tornara-se alegre. Tinha uma cama com colchão de lã e um cobertor novinho em folha. Sarampo dormia em rede de varanda e a casa havia recebido uma mão de cal.

Doutor Albino lhe mandava fortificantes que a tonificavam. Sarampo, gordo lustroso, freqüentava escola à noite e terminou cursando enfermagem, onde se diplomou. Doutor Albino empregou-o na Casa de Saúde, onde ele se dizia rico.

Mas não deixava o seu protetor hora nenhuma. Parecia andar de ouvidos no ar e sondar os seus desejos. Quando pretendeu se casar correu lá a lhe pedir conselhos.

- Vai te casar com moça branca, sarampo. Achas que dará certo. Por que não formas um parzinho igual?

- É doutor não há mais jeito. É grande a paixão dos dois.

- É filha de quem Sarampo?

- Aí é que está o problema. É filha do senhor Pedro Ferreira, comerciante.

- O que, Sarampo?

- Verdade, doutor. Foi ela que me buscou. E a família sabe e aprova.

- Você merece sarampo; uma boa moça mesmo.

- E sabe. O senhor vai ser meu padrinho. Também já não sou mais o moleque sarampo. Agora sou José Abílio, nome de gente branca, não acha?

- Bem se é assim, seja feita tua vontade.

E lá passou o moleque Sarampo de braço com uma moça branca e bonita todo cheio de amores.

- Confio em Nosso Senhor e no doutor Albino. Acho que estou certo. Só quero é que os meninos puxem a beleza dela. Lá em casa, de gente feia basta um... Já aluguei casa e não quero móveis velhos. Tudo do bom e do melhor em homenagens a santinha Maria...

Em, 16.7.1986

João Henriques da Silva

João Henriques da Silva (meu pai) desencarnado
Enviado por gavinha em 02/12/2017
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