LEMBRANÇAS DE HONÓRIO
O velho Honório, tossindo muito, arrastou seus pés pelo pátio de chão batido. Foi até a beira das laranjeiras e apanhou algumas que estavam quase caindo de maduras. Pegou uma faca feita de tesoura de esquila comprada no Uruguai, e começou a descascar. Enquanto comia as laranjas do céu, as imagens de um passado não tão distante lhe cruzavam pela mente. Estava cansado, judiado pelo tempo, tossindo muito, com pulmão fraco e pouca vontade de fazer as coisas. Os amigos apareciam de vez enquanto, amarravam o cavalo, faziam uma prosa cevando mate quente, às vezes ficavam para um carreteiro com feijão, mandioca e quibebe, poucas vezes ficavam para o pouso.
Honório lembrava das guerras da pampa, das revoluções contra os chimangos, desde o fim do século 19, em 1893, quando era ainda um jovem mas viu contar as histórias de degolas nas coxilhas do Rio Grande. Naquela vez os republicanos liderados por Júlio de Castilhos tomaram conta do Estado. Foi um banho de sangue. Depois veio a ditadura positivista do herdeiro de Júlio, seu parceiro Borges de Medeiros. De tantas falcatruas cometidas nas eleições os governantes do lenço branco causaram a revolta nos oposicionistas de lenço vermelho. Outra revolução. Brigas de irmãos contra irmãos. Matanças, degolas, homens, mulheres e crianças desesperadas. Invasões de cidades, prisões arbitrárias, um caos na pampa gaúcha, e lá no meio estava o velho Honório, o chamado tropeiro da liberdade que passou a vida toda levando gado para os frigoríficos de todas as bandas, o intitulado guerreiro Leão do Caverá, general das tropas rebeldes da fronteira. Ele e seus comandados, subindo e descendo a serra do Caverá, entre Rosário, Alegrete, Livramento, Quaraí, levando tropas para as coxilhas de São Gabriel, Dom Pedrito, Uruguaiana... uma região maior que a Palestina, em guerra civil, em 1923, época da modernidade, os comunistas chegando no Brasil... Honório procurado para se juntar aos comunistas, mas o velho disse não a Luís Carlos Prestes e seguiu sua crença nas ideias de Assis Brasil. Nestes meses combateu a ditadura de Borges e foi preso por Flores da Cunha e levado para Porto Alegre de trem onde ficou preso numa ilha do Guaíba até fugir um dia e voltar para sua liberdade na fronteira.
Lembrava das tantas mulheres que teve e perdeu, dos tantos filhos que criou e viu morrer, lembrava das reuniões com fazendeiros e chefes militares, das correrias e tiros no meio do campo de batalha, das trincheiras em cercas de pedras, dos companheiros e inimigos morrendo com seus cavalos, sangrando, manchando de sangue o verde dos campos sulinos.
Uma vez o seu ajudante chegou à beira da fogueira onde o general Honório tomava um mate enquanto pensava em uma estratégia para o avanço de suas tropas e falou ao líder maragato:
- General Honório, os nossos homens estão reunidos, escolhendo quem vão degolar esta noite no acampamento. Têm muitos prisioneiros.
Honório levantou-se apressado, com os olhos saltando da face, com o bigode em pé, e dirigiu-se até o grupo de soldados reunido ao pé de outra fogueira. E falou em alta voz.
- Sob meu comando não haverá nenhuma degola! Todos que estão presos serão entregues ao intendente do nosso lado que está esperando com cadeia para estes desgraçados. E já disse. Falei, tá falado. Não admito ser contrariado!
Os homens dispersaram e foram montar suas rondas. A noite era fria e a lua estava cheia.
Honório voltava às suas recordações, descascava outra laranja e assistia as galinhas e cachorros que corriam pelo pátio. As tosses aumentavam. A fraqueza lhe colocou na cama novamente. Seria a última. Era 1930. Getúlio Vargas preparava uma revolução a nível nacional, iria tomar o país das mãos dos paulistas. Contava com apoio dos mineiros e dos paraíbas. Convidou o velho Honório Lemes para chefiar uma divisão de revolucionários e embarcar num trem rumo ao Rio de Janeiro. O velho doente agradeceu. Estava no fim. Morreu antes da entrada triunfal de Getúlio e os revolucionários de 30 que tomaram o poder da nação.
Milhares de pessoas de toda a região foram dar o adeus ao guerreiro Honório que foi enterrado em Rosário. Sua memória foi estampada em livros, jornais e seu nome lembrado em ruas, escolas e centros de tradições gaúchas. Uma lenda do pampa gaúcho. Um homem convicto da liberdade, sem conhecimentos teóricos da política, mas que deixou uma célebre frase que até hoje merece reflexão: “Queremos leis que governem homens, e não homens que governem leis!”
Publicado no livro Manhãs de Sábado, 2012, ISBN 978-85-7727-450-5