Título sem Documento
O incêndio começou na cozinha no momento em que ele tomava banho. O hábito de cantar no chuveiro - adotado desde os primeiros anos de vida - tornou inaudíveis os ruídos do curto-circuito iniciado na tomada da geladeira. Quando fechou a torneira e encerrou o concerto, sentiu um leve aroma de algo queimando, sensação imediatamente ligada aos cigarros fumados no banheiro. Saiu do box e parou em frente à pia. Olhou-se no espelho enquanto escovava os dentes e só quando terminou a higienização bucal reparou que o odor de objetos em chamas tomara conta do aposento.Ao abrir a porta e sair para a sala, deparou-se com uma fumaça negra e densa a tomar conta do apartamento. O móvel com livros e papéis relacionados ao trabalho ardia sob as chamas. Na cozinha, a geladeira, o micro-ondas e toda a aparelhagem já estavam comprometidas. Conseguiu passar por entre as labaredas e chegou ao quarto, ainda intacto, mas tomado de fuligem. Vestiu a primeira bermuda achada no armário, uma camisa qualquer e voltou à sala. Passou pelo mesmo corredor de fogo e abriu a porta do apartamento. Respirou fundo o ar puro do corredor e ligou para os bombeiros.
Passou as duas horas seguintes olhando, do térreo, as chamas consumirem sua residência com uma dança curiosa. Fogo para cá, fogo para lá, e todos os bens juntados ao longo da vida viravam uma mistura quente de fumaça e cinzas. Na pressa para sair do local, não pegou um documento sequer. Os vizinhos o observavam com receio e certa raiva, pois o prédio, obviamente, fora evacuado pelo Corpo de Bombeiros. Quando conseguiram controlar o fogo, o apartamento já estava no chão. Não sobrara nada para contar a história, sequer um suvenir daquela destruição toda. Um dos bombeiros o abordou.
- O senhor é o dono do apartamento? - perguntou, com voz leve e serena.
- Sim, sou eu mesmo - respondeu Gustavo, tentando se manter calmo - Já descobriram como o incêndio começou?
- Foi por causa de um curto-circuito em uma das tomadas. A fiação do prédio é antiga, precisava de uma reforma há pelo menos cinco anos. A responsabilidade não é sua. Se não fosse hoje, no seu apartamento, seria nos próximos dias no de outro morador.
- Pelo menos isso. Quando consigo o laudo do Corpo de Bombeiros?
- Acredito que hoje ainda a gente lhe entregue isso. No mais tardar, amanhã. Assim que você estiver com esse laudo em mãos, entre com uma denúncia contra o condomínio e a construtora do prédio - o agente apertou solidariamente o ombro direito dele e deu meia volta, caminhando em direção às viaturas vermelhas no estacionamento do prédio.
Gustavo voltou ao apartamento assim que o liberaram para tal. Impassível, andou pelos escombros do que, há poucas horas, era sua residência, seu lar. Viu o aparelho de televisão, presente da mãe quando decidiu sair de casa, derretido a um canto. Um pilha de cinzas ocupava o lugar da cama comprada em doze prestações. Ainda restavam quatro boletos por pagar. Procurou a gaveta onde guardava os documentos, apenas para constatar que todos foram dizimados pelo fogo. Saiu do que fora sua casa e começou a pensar onde dormiria. Procurou vaga em dois hotéis e em uma hospederia. Nos três estabelecimentos foi informado da necessidade de um documento de identificação para dar entrada em algum quarto. Nessa hora o desespero começou a tomar conta de si. Tentou manter-se calmo e saiu para a rua. A noite fria castigava aqueles corajosos o suficiente para deixar o conforto de um abrigo e se aventurar pela cidade.
Entrou no boteco que frequentava - quase diariamente - há anos e pediu uma cerveja. Conhecia o dono de longa data, pelo menos teria uma companhia e um confidente. O garçom trouxe a garrafa e informou que o dono não estava no momento. Bebeu tudo rapidamente, ordenou outra ao atendente e adicionou uma porção de calabresa acebolada. Quando veio a conta, Gustavo percebeu não ter dinheiro. Não pegara carteira, cartão, cheque ou qualquer outra forma de pagar uma simples consumação. Não adiantaria discorrer sobre a amizade com o dono do estabelecimento, ppis ele não estava lá, e claramente ninguém o reconhecia ali. A despeito de suas promessas de voltar outro dia com o dinheiro, o garçom expulsou-lhe a gritos de “não apareça mais aqui”. Saiu do bar com a sensação de haver um plano maior para deixá-lo na rua, e com fome. Estava satisfeito com a porção de calabresa, mas cedo ou tarde precisaria comer novamente. Pegou o celular e começou a digitar o número da casa dos pais, mas logo arrefeceu. Sofrera com o estilo de vida dos progenitores durante vinte anos, não passaria uma noite lá a não ser em situações calamitosas. Refletiu bastante e não encarou o que passava como calamitoso. Estava sem casa, sem dinheiro e sem documentos, mas era jovem, saudável e de boa aparência. Certamente daria um jeito.
Decidiu ir à delegacia resolver a situação rapidamente. Com a abertura de um Boletim de Ocorrência, poderia reaver os documentos em poucos dias; seria também possível passar no banco, já no dia seguinte, e solicitar ao menos um cartão provisório. Assim, teria recursos para bancar alimentação e estadia enquanto não pudesse voltar para casa. O posto policial, uma pequena construção envolta por um enorme estacionamento repleto de viaturas, estava lotado. Alguns policiais fumavam e bebericavam cafés em pequenos copos na entrada da delegacia. Olharam-no de soslaio quando ele passou rumo aos balcões de atendimento. Teria de esperar, e esperou pacientemente. Meia hora depois, uma cadeira foi liberada por um cidadão que desistiu do serviço. Gustavo sentou-se no assento de plástico e aguardou. Logo os trinta minutos se transformaram em uma hora, e ele lá, sentado. Com mais quinze minutos, a adrenalina começou a rarear no sangue e o sono chegou sem dar avisos. Não dormia desde antes do incêndio, em algum momento pregaria o olho novamente. E pregou ali mesmo. O sonho no qual corria entre labaredas, fuligem e fumaça foi interrompido por dolorosas estocadas no braço direito. Acordou num pulo e deu de cara com um dos policiais que fumavam na porta do prédio, a esta hora já vazio. A farda do agente era negra como a madrugada lá fora. Equipado com diversos itens de combate, tinha menos de humano e mais de robô - e talvez o fosse. Fitava-o com cara fechada.
- Tá fazendo o que aqui? - disse por entre os dentes, num claro esforço para juntar mais de duas palavras.
Gustavo se endireitou na cadeira. Enquanto ajeitava o corpo, soltou um cumprimento ignorado pelo soldado.
- Desculpe, senhor - a voz ainda em fiapos pelo tempo de sono - Perdi meus documentos num incêndio e vim fazer a ocorrência.
O agente o encarou por um instante, descrente. Olhou para os outros policiais, ainda num bate papo animado à entrada. Voltou a cabeça novamente a ele.
- Não é aqui que fazemos os B.O.s - falou depois de algum tempo, de forma mais prestativa. - Vamos, acompanho você até lá.
Deu o que podia-se encarar como um sorriso. Gustavo levantou-se e seguiu o agente. Quando passaram pelo grupo à porta, o soldado fez um sinal às suas costas para os colegas, que os seguiram. Contornavam a delegacia quando aconteceu. O primeiro chute dobrou-lhe as pernas e ele caiu de joelhos. Logo depois uma pezada nas costas tirou-lhe o ar dos pulmões. Caiu de barriga no chão, arfando e ainda sem entender o que se passava. Somente no quinto golpe cuidou de proteger as costelas e a cabeça. Os coturnos atingiam-no com força descomunal e abriam focos de dor por todo o corpo.
- Você… Acha… Que delegacia… É abrigo… Seu vagabundo? - cuspia um dos policiais enquanto levava e trazia a perna, mirando a cabeça e o peito da vítima.
- Vá dormir na casa do caralho, seu merda! - gritou outro agente, o ódio estampado na face avermelhada.
Ninguém parecia ouvir, ou, se ouvia, não parecia se importar. Quando os defensores da lei terminaram, Gustavo jazia curvado, as mãos ainda protegendo o abdômen. Desmaiou logo em seguida. Os agentes o carregaram até uma viatura e saíram das dependências da delegacia. Andaram por um emaranhado de ruas e largaram-no numa esquina mais isolada.
Recobrou os sentidos pouco tempo depois, mas continuou estendido no chão, o corpo todo moído. Enumerou os estragos. Perdera dois dentes, e mais três estavam rachados e capengas. Certamente havia alguma fratura nas costelas, pois até mesmo a respiração causava dores insuportáveis. Passou mais uma hora deitado até ter forças para se manter de pé. A madrugada corria a galope solto. Quando conseguiu ordenar os pensamentos, viu-se a poucas ruas do prédio onde moravam os pais. “Bom”, pensou ele, “agora a situação é desesperadora”. Começou a dolorosa caminhada rumo ao apartamento onde crescera. Curvado de dor, precisava parar a cada metro para retomar o fôlego e a coragem. O bairro era movimentado e, apesar do avançar das horas, muita gente passava pelas ruas, desviando rapidamente o caminho e o olhar ao cruzarem com ele. Tinha as roupas rasgadas, sujas e manchadas de sangue, ninguém aprova isto. Fingiam não vê-lo. Uma jovem vinha apressada, mexendo ao celular, e trombou com ele. Foi uma forte trombada, mas ela seguiu como se nada acontecera, deixando-o em contorções dolorosas.
A duras penas chegou ao edifício dos pais. Aproveitou a saída de um carro e entrou pelo portão da garagem. Foi até o elevador e apertara o andar dos progenitores quando o porteiro o abordou. Com muito esforço, explicou que os pais moravam ali. A contragosto, o vigilante concordou em bater à porta do casal para uma confirmação. Bateram na madeira branca e aguardaram. Um senhor muito elegante atendeu, o som de música ganhando o corredor. Davam uma festa.
- Boa noite, Francisco - cumprimentou o homem, sem dar atenção a Gustavo. - Em que posso ser útil?
- Seu Arnaldo, esse moço aqui tá dizendo que é seu filho.
Gustavo sorriu para o pai, mostrando os espaços entre os dentes rachados, quase indo de braços abertos para um abraço no homem. Arnaldo segurou uma gargalhada.
- O que? - questionou, risonho - Chico, você sabe muito bem que eu não tenho filhos. Que piada de mau gosto é essa? - completou, rindo e apoiando as mãos na cintura.
Gustavo ficou perplexo. Imaginava que o pai, vendo-lhe naquele estado, logo o levaria a um hospital, e, principalmente, a um dentista.
- Mas, pai… - disse, a voz já chorosa, em desespero. - Sou eu, Gustavo…
Arnaldo fitou-o, impassível.
- Garoto, já disse que não tenho filhos. Chega disto, preciso entrar - levou a mão ao bolso e sacou uma nota de cinquenta reais - Tome, você parece precisar.
Dito isto, virou-se para o porteiro:
- Francisco, por favor acompanhe este rapaz até a saída - e, olhando com certa severidade, completou: - E sem mais piadas, ok?
O guardião assentiu, embaraçado, enquanto o morador fechava a porta da residência. Gustavo estava em choque. Ainda segurava o dinheiro recebido do pai como esmola. Atendeu ao gesto do porteiro indicando o elevador. Saiu à rua, incrédulo. Por cinco minutos, ficou petrificado. Seu próprio pai não o reconhecera. Sequer lembrava de ter um filho. O ressentimento abriu um caminho molhado pelo rosto.
Começou a andar sem rumo. Trocou de direção várias vezes, virando em ruas aleatoriamente. Um homem de terno quase o derrubou com um encontrão, e logo em seguida um jovem bem vestido pisou-lhe o pé. Nenhum dos dois se preocupou em pedir desculpas, como se houvessem topado em um objeto inerte, sem vida. Nem ligava mais para a dor ou para os dentes amolecidos. Andou alguns metros e viu três pessoas maltrapilhas sentadas a um canto da calçada. Um adulto e um casal de adolescentes, mas mal notava-se diferenças de idades ou gênero. Estranhamente familiares apesar de nunca tê-los visto antes. As vestes, rotas, eram apenas pedaços de pano sobre a pele. Cobertores imundos forravam o chão abaixo deles. Encontrou o olhar do homem e este lhe sorriu bondosamente, indicando um lugar vazio à sua direita. Gustavo caminhou a seu encontro e sentou-se a seu lado. Os jovens lhe sorriram, banguelas, e voltaram as atenções ao pedaço de pão dividido por eles, alheios ao vai e vem frenético de pessoas alheias a eles.