A historia de um jabuti

A História de um Jabuti

Naquele tempo eu ainda tinha muita dificuldade com a língua portuguesa. Minha família estava no Brasil há mais de quatro anos, mas como só nos comunicávamos com outras famílias japonesas só falávamos em língua japonesa. Só as crianças, ao freqüentar a escola aprenderam a falar um pouco da língua local. Mas só conhecia umas poucas palavras, de modo que a comunicação deixava muito a desejar.

Lembro-me, por exemplo, do dia em que apareceu na nossa escola uma equipe médica com a finalidade de avaliar as condições de saúde dos alunos daquela comunidade. Na ocasião não compreendi nada do que se passava. Quatro ou cinco pessoas entraram na nossa sala de aula, trocaram algumas palavras com a professora e em seguida passaram a explicar uma série de coisas que eu simplesmente não entendi.

Trouxeram uma balança e a instalaram próximo da mesa defronte ao quadro-negro, colocaram-na encostada na parede ao lado de uma escala para medir a altura, e começaram as entrevistas. Todos os alunos estavam excitados e animados pela novidade.

Chamaram os alunos, um a um pela ordem alfabética, fizeram diversas perguntas, mediram a sua altura e seu peso. Finalmente quando chegou a minha vez, sentei-me na frente da mesa da professora, agora ocupada por uma jovem bonita, de cabelos longos, cacheados, de aproximadamente 30 anos.

- Seu nome?

- Idade?

As primeiras perguntas foram tranqüilas. Compreendi e respondi sem dificuldades. O problema surgiu com a seguinte pergunta:

- Você enxerga bem?

Eu nunca tinha ouvido a palavra “enxerga”.

- O quê? Perguntei, imaginando que talvez não tivesse ouvido bem.

- Você enxerga bem? Repetiu.

Não tinha a menor idéia do que significava aquela frase. Pensei um pouco, hesitei. Depois, na tentativa de fazê-la repetir a pergunta com uma frase que eu pudesse compreender perguntei:

- Como?

- Eu perguntei se você enxerga bem.

Falou pausadamente, quase soletrando, pensando talvez que eu fosse meio surdo. Para o meu desespero a palavra “enxerga” continuava intacta na frase tornando-a indecifrável.

Eu era um garoto acanhado, o meu vocabulário deixava muito a desejar, e nervoso com a excitação do momento, não sabia como lhe explicar que eu não compreendia a palavra “enxerga”. Aliás, muito provavelmente nem conseguiria pronunciá-la.

- Por favor, me explica, balbuciei.

- Imagine o seguinte: se houvesse um passarinho no galho daquele pé de eucalipto, você enxerga ou não? Perguntou apontando para uma das árvores grandes que dominavam a paisagem.

Pronto, a palavra passarinho, me lembrou do meu bodoque que acabara de fazer aproveitando um pedaço da câmara de ar, que meu irmão me trouxera de Itabuna. Lembrei da galinha aleijada da vizinha, minha primeira vítima. Não foi culpa minha, é que tendo acabado de aprontar o bodoque, saí para testar. Procurei em vão por um passarinho, mas no calor sufocante do meio dia não havia uma alma viva. Foi nesse momento que a galinha aleijadinha passou por mim provocando. Com aquela perninha, uma maior que a outra, passou rebolando na minha frente. Coloquei uma pedra, mirei, estiquei o elástico, mas resisti e não atirei. Entretanto, ela retornou provocante, saltitante, e passou na minha frente várias vezes. Sabia que eu nunca fui bom de mira, que jamais acertaria na primeira tentativa, puxei o elástico e soltei a pedra, sem fazer muita força para não machucar, sem fazer muita mira para não acertar, mas a pedra caprichosamente caiu bem no meio das costas da galinha. Ela caiu e começou a gritar. Tentou correr, mas suas pernas aleijadas não obedeciam. Assustado, peguei-a com as duas mãos, afaguei-lhe as penas coloquei-a em pé. Mas a bichinha desesperada não conseguia permanecer em pé. Caiu e ficou remando com as pernas para cima. Olhei para todos os lados, não havia ninguém. Peguei-a delicadamente, com a consciência pesada, levei até uma moita mais próxima e escondi a prova do crime.

- Não! Respondi sem saber o que eu dizia. – Não enxergo não.

- Não?! Exclamou preocupada.

- E se fosse um passarinho bem grande? Perguntou.

Os pensamentos passavam rápidos pela minha cabeça. Será que ela está pensando que estou mentindo? Que mal haveria em qualquer coisa que eu fizesse a um passarinho no galho de uma árvore? Por que fui me lembrar daquela galinha maldita? Por que fui dizer não, para uma pergunta tão inocente?

- Bem, se o passarinho for bem grande, acho que sim. Respondi conciliador.

- Este menino tem problema de visão. Sentenciou.

- Não tinha percebido isto, disse a minha professora.

- Você está vendo aquela placa lá na estrada? Perguntou.

- Sim, respondi.

- E aquela casa lá adiante?

- Sim, estou.

- Ora, então ele enxerga direitinho.

- Porque não me disseram que “enxergar” era “ver”? Pensei.

Mas o mal já estava feito, e eu tinha que manter a minha palavra.

- Não enxergo não! Gritei. – Só se for grande. Insisti.

Entretanto, eu não era um mau aluno. Aprendia as coisas com facilidade, matemática, história, geografia, e ciências. O meu problema só era o português. Mesmo assim, nos primeiros dias, quando a professora ensinava o ABC eu fui um dos primeiros alunos a ler e compreender o texto da cartilha. Meu problema só era na hora de ler em voz alta.

B-O bo L-A la, bola, dizia a professora, e os alunos repetiam B-O bo, L-A la, bola, repetíamos todos, mas na hora que eu lia sozinho, sem a turma me acompanhando ela invariavelmente dizia:

- Não, Hiromi, repita comigo, B-O bo, L-A la, bola.

Eu repetia, e ela reclamava. Não, meu filho, L-A la, entendeu? L-A la.

E eu repetia. E ela novamente reclamava. Não, meu filho, L-A la, entendeu? L-A la, dizia.

E eu repetia a mesma palavra várias vezes, e ela pacientemente mandava repetir. Não! não! L-A la, entendeu? L-A la, e eu repetia, repetia até que de repente ela gritava.

- Isto! É assim mesmo, e passava para a próxima lição, e eu ficava sem saber o que eu tinha dito de diferente.

Meu problema só era com o “L” “A” la; “L” “E” lê; “L” “I” li; “L” “O” lo; e o “L” “U” lu, que tinha um mistério a decifrar. O resto era tranqüilo.

Um dia, ao chegar à escola, senti uma excitação geral entre os meus colegas. Perguntei o que estava acontecendo, ao que alguém me respondeu.

- É CHAMADA ORAL, a prova de hoje é chamada oral!

Não sabia o que era chamada oral, mas sentia o temor pairando no ar. Algumas meninas estavam claramente assustadas.

Temeroso, perguntei ao meu amigo do lado o que era “chamada oral”.

- É assim, a professora faz uma pergunta, cada vez que você responder errado ganha um bolo. Disse rindo.

- O que é um bolo? Perguntei?

- Tá vendo aquela madeira em cima da mesa? Pois é, ela pega a sua mão assim na ponta dos dedos, e pimba!. No fim do questionário a sua mão vai estar vermelha e ardendo. Se não for macho, se acaba de chorar...

Minutos depois começou a fatídica chamada oral.

A professora, normalmente uma senhora carinhosa, se transformara numa megera. Com a palmatória na mão direita, pegava na mão do aluno com a esquerda forçava os dedos para que ele abrisse a palma da mão e olhando nos olhos fazia a pergunta.

- Quem descobriu o Brasil?

- Pedro Álvares Cabral.

- Quando o Brasil foi descoberto?

- Dia 22 de abril de 1.500.

- Quem foi D. Pedro I ?

- Foi o primeiro imperador do Brasil.

Quando o aluno não sabia a resposta, fechava os olhos, contraía o corpo e aguardava o bolo. A professora repetia a pergunta, e se o silêncio persistia, a palmatória cantava com vontade na mão do infeliz. Enquanto o infeliz chorava, alguns riam vingando-se por antecipação do castigo que por certo viria. A porta estava trancada a chave para que ninguém tentasse escapar. Alguns felizardos, que conseguiram responder todas as perguntas, procuravam encorajar os mais próximos, enquanto outros que não tiveram a mesma sorte choravam pelos cantos.

Quando ouvi o meu nome, levantei automaticamente e apresentei-me diante da professora. Dei a minha mão direita aberta como ela queria. Ela segurou na ponta dos dedos, olhou no fundo dos meus olhos e perguntou.

- Quem descobriu a América?

- Cristóvão Colombo.

Não sabia o significado da palavra “descobriu” e nem o que era a “América”, tampouco sabia que Cristóvão Colombo era nome de gente, mas sabia a resposta na ponta da língua.

- Em quantas partes se divide o corpo humano?

- Três, cabeça, tronco, e membros.

- Para que serve o boi?

- O boi produz a carne para o alimento, e o couro para a indústria.

- Qual o animal que produz lã?

Foi aí que a coisa pegou. Qual o animal que produz lã?

Olhei para a professora e vi um lampejo de bondade nos seus olhos. Ela gostava de mim e não iria me bater se não fosse necessário. Procurou facilitar para mim.

- O cachorro tem pelos, o peixe tem as escamas, as galinhas tem penas, disse.

- Qual o animal que produz a lã?

Não era o boi, pois ele produz o couro, não era o peixe, pois ele é coberto por escamas, não eram as galinhas, pois tinham pena. O que poderia ser “lã”?

Pensei em todos os animais que conhecia.

- Seria o urubu? Não, pensei, eles também têm penas. Seriam as pacas? Não elas têm pelos.

Pense rápido, falei comigo mesmo. Que tipo de animal não tem pelos e nem escamas e nem penas?

De repente, como que uma luz que se acende, lembrei de um grupo de animais que atendiam estas condições, poderia citar vários, mas escolhi um e falei em voz alta e clara.

- JABUTI.

- Hei! Jabuti!

Era um grupo de garotos da minha sala rindo alto. Jabuti que produz lã venha cá, Jabuti.

Disfarçadamente olhei para a minha mão que ardia. Não estava incomodando. Meus olhos vermelhos não eram da dor da palmatória, eram dos gracejos dos garotos me chamando de Jabuti.