Tio Zé
_ Nasci na florada do pau de agosto do ano de 1935. Veja você que já são oitenta as vezes que o ipê cobriu com o amarelo de suas flores o desespero de minha pobre existência.
Fala como se viver tivesse sido uma sucessão de momentos infelizes. Está hoje mais deprimido que de costume. O tempo chuvoso certamente contribui para esse seu estado de espírito.
Tenho outros amigos com a mesma idade, alguns até mais velhos, e que mantém um espírito vivo e exprimem pelos gestos, palavras e atitudes, ainda muito gosto pela vida, mas ele me parece cansado. Fala com dificuldade, sempre gesticulando muito, como é sua marca. Às vezes faz uma pequena pausa com os olhos apertados como que a olhar para dentro de si mesmo, rebuscando na memória fatos e lugares que vai reproduzindo em detalhes.
“Com um mês de nascido tive que ser separado de minha mãe por causa da febre amarela que ela contraiu. Eu tinha uma madrinha negra, que cuidou de mim até que se restabelecesse. Lembro-me dela, que o evento da doença de minha mãe tornou uma pessoa de dentro de nossa casa. Chamava-se Deolinda, mas devia chamar-se Caridade.
Na primavera de 1942 eu contava sete anos. Naquele dia meu pai estava no trabalho. Tínhamos uma criada que cuidava de Lia, então com cinco anos e de Antônio, com três. Minha mãe mandou que eu selasse a égua com os cargueiros. Lembro-me que era uma poldra de muita personalidade, servia de animal de carga para minha mãe e eu, e de cavalgadura para meu pai, sempre muito dócil para conosco, mas não se sujeitava a qualquer outra pessoa. Bicho por demais inteligente já conhecia a rotina de nossas atividades, seguiu à nossa frente até o mandiocal onde meu pai havia arrancado de véspera a carga de mandioca. Enchemos os cestos do cargueiro de tal forma que, vez ou outra uma mandioca caía, a égua que seguia à nossa frente parava esperando que recolocássemos no cargueiro a mercadoria que se desprendera.
Lembro-me que minha mãe picou e descascou toda a mandioca, a criada me ajudou a lavar tudo enquanto ela ia ralando, ao término do que colocamos a massa na prensa. À tarde quando minha mãe torrava a farinha armou-se uma grande chuva para o lado do poente e antes que ela terminasse a tarefa o cheiro de terra molhada já se misturava ao delicioso cheiro da farinha. Foi então que ela se lembrou da galinha que chocava na bananeira. Sem pensar nos riscos para a sua saúde saiu da proteção do coberto da fornalha quente para salvar a criação. Ainda posso vê-la sob a chuva grossa, contendo com uma das mãos a ninhada de pintos na longa saia do vestido e com a outra segurar a galinha que gritava desesperada.
Foi a última vez que vi minha mãe de pé. Três dias depois a vi ser transportada num catre por quatro homens. Disseram-me que foi conduzida dessa forma até a estação e de trem para um hospital, de onde nem sequer seu corpo jamais voltou.”