Assim que entrei em Zubiri começaram meus problemas. Eu fazia o Caminho pausadamente, às vezes abraçando uma árvore ou a coluna secular de uma igreja. Gostava de fotografar de todos os ângulos do Caminho as belíssimas paisagens que se sucediam quase que indefinidamente. Por isso era frequentemente o último a chegar ao final de cada etapa. Eu tinha ido ali para aproveitar todos os momentos e enriquecer minha bagagem cultural. Tinha o tempo necessário para desfrutar do Caminho e era isso o que iria fazer.
Mas tudo tem um preço. O albergue municipal de Zubiri já estava lotado quando cheguei, assim como os hotéis. Apesar de todo o cansaço, pensei em caminhar mais 7 km até Larrasoaña, o próximo ponto alternativo.
De repente vi do outro lado da rua duas moças que me acenavam alvoroçadas. Eram Carla e Ivete, duas baianas que eu havia conhecido no restaurante em Roncesvalles, pois o "cura" do albergue nos havia encaminhado à mesma mesa para o jantar.
Disseram-me não haver mais hospedagem disponível em Zubiri, mas que elas tinham encontrado um quarto com quatro camas numa casa particular e se eu não queria vir junto e compartilhar.
Elas tinham uma outra irmã que morava na Espanha e que já havia arranjado tudo pelo celular, a quem então me apresentaram naquele momento.
Chamava-se Carminha. Ela era mais velha que as outras duas e ao contrário destas, de muito poucas palavras.
Não demorou em deixar as coisas claras dizendo pras irmãs na minha frente: olhem aqui - vocês convidaram esse cara apenas porque o viram em Roncesvalles uma única vez? Assumam as consequências do que estão fazendo e não venham reclamar comigo depois.
Não pude deixar de rir diante de tanta espontaneidade e franqueza. Carminha parecia haver incorporado o velho modo de ser europeu. Morei na Itália por dois anos seguidos (Pisa) e já estava acostumado. Os europeus não douram palavras, mas em contrapartida são muito leais e amigos de verdade.
Falei que não queria incomodar e que seguiria adiante. Carla e Thais se opuseram imediatamente: oxente Sergio, imagina. Nada disso. Você vem com a gente sim.
Mas ainda não jantei, retruquei.
Vai lá que a gente te espera. O cara da casa só vai chegar aqui em meia hora.
Jantei rapidamente no restaurante logo em frente, mas não pude tomar o meu vinho pacientemente como gosto de fazer. Entretanto, as circunstâncias assim o exigiam. Fazer o quê?
O dono da casa chegou em 15 minutos e quando saí do restaurante notei que Carminha estava passando uma esculhambação nas irmãs por estarem todos ali me aguardando com as respectivas mochilas já no porta-malas do carro. Pensei em mandar tudo às favas e prosseguir para Larrasoaña, ou até mesmo a passar a noite no meu saco de dormir em algum canto por ali sob uma marquise, mas por outro lado não poderia desdenhar da bondade de Carla e Ivete. Além disso, na Espanha não há marquises.
Carminha foi na frente com o espanhol e eu atrás imprensado entre as duas irmãs.
Já na casa, deixei que elas utilizassem o confortável banheiro da suíte em que estávamos e somente depois tomei meu banho escaldante, mergulhando imediatamente em seguida sob as grossas cobertas.
O problema é que sofro ciclicamente de pesadelos, chegando a gritar de madrugada em algumas ocasiões. Minha mulher já se acostumou. Eu havia me esquecido disso. Paciência - não tinha mais volta. Só me restava rezar para que nada acontecesse.
Despedi-me das três com um boa noite e entreguei meu espírito aos anjos. Carminha não retribuiu a minha gentileza.
Lá pelas 3 horas da manhã não deu outra: sonhei que estava despencando de um precipício e dei um potente berro que fez estremecer a porta do quarto e balançar os quadros da parede.
- Puta que pariu, disparou Carminha - que merda é essa??
Pedi um milhão de desculpas pelo ocorrido, mas o estrago já estava feito. Carminha estava com a cachorra e dirigindo-se às irmãs vociferou: vocês foram as únicas culpadas dessa encrenca toda - se ele der outro grito como esse aqui dentro os três vão ter que pegar o caminho mais cedo pra Pamplona. Tô avisando!!!
Felizmente nada mais aconteceu, mas com medo de que pudesse vir a ocorrer algo novamente, não me atrevi a dormir. De manhã cedo na mesa do café acabamos rindo um bocado sobre o ocorrido, inclusive Carminha que parecia mais cordial comigo.
Contou-me que já estava na Espanha trabalhando há anos e não cogitava retornar tão cedo. Deixei que elas partissem na minha frente para Pamplona, pois eu queria mesmo era caminhar sozinho durante os 23 km necessários para chegar a essa linda e milenar capital da Comunidade Autônoma da Navarra.
A rua da casa onde dormimos se conectava naturalmente ao Caminho. Assim que as três irmãs baianas desapareceram lá no final após uma curva, despedi-me do proprietário e pus-me em marcha. Não queria chegar muito tarde a Pamplona, pois tinha medo de não encontrar abrigo no Albergue Municipal daquela cidade, já que muitos peregrinos preferem iniciar o Caminho a partir dali. Tentei resistir à tentação de parar para fazer novas fotos, mas isso era praticamente impossível. Comecei a encontrar rios de águas cristalinas e livres de qualquer contaminação, onde alguns pescadores enchiam seus cestos com trutas. Parei para observá-los, mas percebi uma certa reprovação estampada em seus rostos, talvez pelo receio de que eu pudesse fazer algum ruído que atrapalhasse a pescaria. Continuei a caminhar, mas não antes de fazer algumas fotos do que estava vendo.
Lembrei-me que Ernest Hemingway também adorava pescar trutas nos riachos de Burguete para depois saboreá-las com o bom vinho da Navarra.
Como que num voo imaginário feito nas costas de um pássaro mitológico, cruzei extasiado vários "pueblos" e vilas, cada um mais interessante que o outro, com suas igrejas e casas amarelo escuro ou cor de tijolo queimado, que em muito lembram as cores da bandeira espanhola. Larrasoaña, Akerreta, Zuriain, Irotz, Zabaldika, Arieta, Trinidad de Arre e finalmente lá estava ela bem diante de mim: a imponente e linda capital da Navarra - Pamplona.
E por onde andaria a invocada Carminha?
Vai saber....... // Eta baiana invocada!!!!!!
Mas tudo tem um preço. O albergue municipal de Zubiri já estava lotado quando cheguei, assim como os hotéis. Apesar de todo o cansaço, pensei em caminhar mais 7 km até Larrasoaña, o próximo ponto alternativo.
De repente vi do outro lado da rua duas moças que me acenavam alvoroçadas. Eram Carla e Ivete, duas baianas que eu havia conhecido no restaurante em Roncesvalles, pois o "cura" do albergue nos havia encaminhado à mesma mesa para o jantar.
Disseram-me não haver mais hospedagem disponível em Zubiri, mas que elas tinham encontrado um quarto com quatro camas numa casa particular e se eu não queria vir junto e compartilhar.
Elas tinham uma outra irmã que morava na Espanha e que já havia arranjado tudo pelo celular, a quem então me apresentaram naquele momento.
Chamava-se Carminha. Ela era mais velha que as outras duas e ao contrário destas, de muito poucas palavras.
Não demorou em deixar as coisas claras dizendo pras irmãs na minha frente: olhem aqui - vocês convidaram esse cara apenas porque o viram em Roncesvalles uma única vez? Assumam as consequências do que estão fazendo e não venham reclamar comigo depois.
Não pude deixar de rir diante de tanta espontaneidade e franqueza. Carminha parecia haver incorporado o velho modo de ser europeu. Morei na Itália por dois anos seguidos (Pisa) e já estava acostumado. Os europeus não douram palavras, mas em contrapartida são muito leais e amigos de verdade.
Falei que não queria incomodar e que seguiria adiante. Carla e Thais se opuseram imediatamente: oxente Sergio, imagina. Nada disso. Você vem com a gente sim.
Mas ainda não jantei, retruquei.
Vai lá que a gente te espera. O cara da casa só vai chegar aqui em meia hora.
Jantei rapidamente no restaurante logo em frente, mas não pude tomar o meu vinho pacientemente como gosto de fazer. Entretanto, as circunstâncias assim o exigiam. Fazer o quê?
O dono da casa chegou em 15 minutos e quando saí do restaurante notei que Carminha estava passando uma esculhambação nas irmãs por estarem todos ali me aguardando com as respectivas mochilas já no porta-malas do carro. Pensei em mandar tudo às favas e prosseguir para Larrasoaña, ou até mesmo a passar a noite no meu saco de dormir em algum canto por ali sob uma marquise, mas por outro lado não poderia desdenhar da bondade de Carla e Ivete. Além disso, na Espanha não há marquises.
Carminha foi na frente com o espanhol e eu atrás imprensado entre as duas irmãs.
Já na casa, deixei que elas utilizassem o confortável banheiro da suíte em que estávamos e somente depois tomei meu banho escaldante, mergulhando imediatamente em seguida sob as grossas cobertas.
O problema é que sofro ciclicamente de pesadelos, chegando a gritar de madrugada em algumas ocasiões. Minha mulher já se acostumou. Eu havia me esquecido disso. Paciência - não tinha mais volta. Só me restava rezar para que nada acontecesse.
Despedi-me das três com um boa noite e entreguei meu espírito aos anjos. Carminha não retribuiu a minha gentileza.
Lá pelas 3 horas da manhã não deu outra: sonhei que estava despencando de um precipício e dei um potente berro que fez estremecer a porta do quarto e balançar os quadros da parede.
- Puta que pariu, disparou Carminha - que merda é essa??
Pedi um milhão de desculpas pelo ocorrido, mas o estrago já estava feito. Carminha estava com a cachorra e dirigindo-se às irmãs vociferou: vocês foram as únicas culpadas dessa encrenca toda - se ele der outro grito como esse aqui dentro os três vão ter que pegar o caminho mais cedo pra Pamplona. Tô avisando!!!
Felizmente nada mais aconteceu, mas com medo de que pudesse vir a ocorrer algo novamente, não me atrevi a dormir. De manhã cedo na mesa do café acabamos rindo um bocado sobre o ocorrido, inclusive Carminha que parecia mais cordial comigo.
Contou-me que já estava na Espanha trabalhando há anos e não cogitava retornar tão cedo. Deixei que elas partissem na minha frente para Pamplona, pois eu queria mesmo era caminhar sozinho durante os 23 km necessários para chegar a essa linda e milenar capital da Comunidade Autônoma da Navarra.
A rua da casa onde dormimos se conectava naturalmente ao Caminho. Assim que as três irmãs baianas desapareceram lá no final após uma curva, despedi-me do proprietário e pus-me em marcha. Não queria chegar muito tarde a Pamplona, pois tinha medo de não encontrar abrigo no Albergue Municipal daquela cidade, já que muitos peregrinos preferem iniciar o Caminho a partir dali. Tentei resistir à tentação de parar para fazer novas fotos, mas isso era praticamente impossível. Comecei a encontrar rios de águas cristalinas e livres de qualquer contaminação, onde alguns pescadores enchiam seus cestos com trutas. Parei para observá-los, mas percebi uma certa reprovação estampada em seus rostos, talvez pelo receio de que eu pudesse fazer algum ruído que atrapalhasse a pescaria. Continuei a caminhar, mas não antes de fazer algumas fotos do que estava vendo.
Lembrei-me que Ernest Hemingway também adorava pescar trutas nos riachos de Burguete para depois saboreá-las com o bom vinho da Navarra.
Como que num voo imaginário feito nas costas de um pássaro mitológico, cruzei extasiado vários "pueblos" e vilas, cada um mais interessante que o outro, com suas igrejas e casas amarelo escuro ou cor de tijolo queimado, que em muito lembram as cores da bandeira espanhola. Larrasoaña, Akerreta, Zuriain, Irotz, Zabaldika, Arieta, Trinidad de Arre e finalmente lá estava ela bem diante de mim: a imponente e linda capital da Navarra - Pamplona.
E por onde andaria a invocada Carminha?
Vai saber....... // Eta baiana invocada!!!!!!