"Xô, bicho!"
O causo que vou relatar é baseado em fatos reais. Aconteceu em algum lugar no pé da serra do Cariri, no Ceará, e o seu protagonista é um senhor com quem eu tive pouco tempo de convivência, o suficiente para guardar deliciosas lembranças e admiração por sua figura humana. Chamava-se José Freitas Ribeiro, filho de Pedro, e por isso, era conhecido por "Zé de Pedro". Da abreviação da abreviação, tornou-se "Zé Pedro", e assim ficou conhecido definitivamente por amigos e familiares.
De pequena estatura e uma bondade enorme no coração, era um homem valente no melhor sentido da palavra, daqueles que lutava com bravura e dignidade pela sobrevivência, vendendo doces no lombo de uma tropa de muares pelas estradas na região da Chapada do Araripe, bem como sendo proprietário de um pequeno sítio naquelas bandas. E foi ouvindo este "causo" que aprendi que um homem, para ser valente, não precisa necessariamente ter algum apego à violência ou fazer uso de armas, a não ser que seja em caso extremo de legítima defesa.
Quando se fala em interior do Nordeste, nós, do sudeste, imediatamente imaginamos o sol quarando em temperaturas altas, aliado à seca. Isso é estigma, em alguns casos. No sopé da Serra do Cariri, na região do Crato, por exemplo, as temperaturas são amenas e o solo relativamente fértil, não sofrendo tanto com a escassez de água. E foi neste cenário que "Zé Pedro", casado com Angélica, mantinha seu sítio, e dele, retirava o suficiente para a subsistência, tendo, na propriedade, pequenas criações e plantações de hortaliças e legumes.
Como a maioria dos sitiantes daquela época e daquele lugar, "Zé Pedro" tinha uma espingarda em casa, mas até onde eu saiba, repudiava a possibilidade de ter que usá-la. A possuía por precaução, levando-se em consideração a iminência de alguma eventualidade. A propriedade produzia bem, mas uma coisa passou a incomodar o jovem casal: as verduras plantadas com todo o cuidado na horta pareciam estar saciando a fome de algum boêmio e assíduo ladrão, que curiosamente, fazia suas incursões de forma sorrateira e discreta, nascendo ali, um mistério.
A coisa passou a incomodar "Zé Pedro", que resolveu montar guarda na janela semi-aberta da pequena casa, com vistas à horta. E foi no meio da noite que o visitante apareceu. Tomado pela cólera dos que são surrupiados, o sitiante empunhou a espingarda e correu em direção ao ladrão, que perplexo, ficou paralisado, com as finas pernas trêmulas e os olhos pedindo clemência. O homem manteve o alvo na mira, um veado que provavelmente saía do interior da mata no pé da serra, com o objetivo de saciar a fome de forma prática. Caça e caçador fitavam-se simultaneamente, e o disparo parecia ser questão de tempo. Pouco tempo, aliás.
Mas quem conheceu "Zé Pedro", (como eu conheci), sabia que o desfecho da história não poderia conter um animal estrebuchando pelo simples fato de querer saciar a fome. O homem valente, de
de bom coração e avesso à violência encheu o peito com voz de piedade e gritou: "Xô, bicho!" O animal pareceu entender o recado e saiu em disparada, para numa mais voltar naquele sítio.
Esta história por várias vezes foi contada com orgulho pelo meu pai, falando sobre meu avô, o sitiante "Zé Pedro": O homem que servia com muito carinho lascas de rapadura aos netos, dentre eles, os dois caçulas, (eu e meu irmão). Acho que é por isso que até hoje, adoro rapadura. Mais pela docilidade das lembranças do que necessariamente, pelo sabor da iguaria...
* O Eldoradense