Solidão

   Ele acabara de chegar ao bar-restaurante à beira do lago, mais ou menos às oito da noite, naquela sexta-feira comum, para fugir do vazio da separação que ultimamente vinha teimando em perturbar suas noites. Sessentão, aposentado, após 38 anos de um casamento sem altos nem baixos, passara a morar sozinho na chácara de sua propriedade, à beira d’água, não muito distante dali.
   A separação fora por não suportar mais aquela vida. A mulher já não lhe atraía, nem física nem mentalmente. Aliás, é bem verdade que o casamento fora mais um arranjo entre famílias do que uma união entre dois jovens apaixonados. Sentia-se abandonado pelos três filhos homens. Mesmo porque depois de adultos e emancipados, já haviam tomado cada um seu caminho na vida, e pouco se encontravam. E quando isto acontecia pouco se falavam. De uns tempos para cá, depois que pegou a aposentadoria de ex-funcionário da Receite Federal, a rotina de quem não tem mais nada com que se preocupar causava-lhe um tédio insuportável, levando-o a procurar lenitivo em relacionamento amoroso com outras mulheres bem mais jovens que ele. Não era um freguês costumeiro ali, pois só vinha esporadicamente, já que não era dado a libações etílicas diárias, como a maioria de seus ex-colegas de trabalho.
   O bar, uma construção rústica de madeira, meio encravado nas barrancas do lago, que terminava em um avarandado suspenso em pilastras, projetava-se até a beira d’água. Desta forma quem ocupasse as primeiras mesas, sentindo o carinho da brisa no rosto, ao tempo em que observava o suave ondular das águas, tinha a sensação de estar na proa de um barco navegando em mar aberto. Cercado à esquerda e aos fundos por mata nativa, isto impregnava o ambiente com aromas florestais e essências de raras fragrâncias.
   E ali estava o ex-funcionário da Receita, solitário, a ocupar a mesa que ele achara mais discreta, junto à balaustrada, apropriada para o que ele pretendia fazer. Ou pelo menos esperava: um encontro que iria decidir seu relacionamento com a mulher que poderia, a partir desta noite, transformar-se na companheira para o resto da vida e assim preencher o vazio de sua existência. Uma decisão que lhe parecera lógica e natural.
   No som ambiental, ao cair daquela noite tépida de primavera, aquela música de jazz antigo criava uma atmosfera apropriada, tanto para reflexões quanto para colóquios amorosos. O encontro estava marcado para aquele local, sem horário definido: das oito horas em diante. Para começar e ter o que fazer enquanto concatenava as idéias, um tanto cheias de dúvidas ultimamente, chamou o garçom e pediu uma cerveja. – No ponto – recomendou.
Enquanto fumava, observou o esplendor da lua cheia despontando gloriosa detrás das colinas, na outra margem, que, ao refletir seu clarão prateado nas águas, criava uma esteira tremeluzente que vinha em sua direção. E contra o fundo escuro da paisagem, já quase no horizonte, um rosário de luzinhas pisca-piscas, amarelas, demarcava o perfil de uma cidade.
   Envolvido pela poesia do ambiente, pensava: “A melhor hora para se observar a lua cheia em todo seu esplendor é esta, na terceira noite de cheia. Mesmo por que na primeira noite, como ela nasce as seis, não tem graça, pois ainda é dia claro.      Enquanto que na terceira noite, como agora, é o ideal. Seu despontar fica magnificente em noite já posta, como uma vestal soberana que vem rasgando o véu de poeira da via-láctea e espalhando sua luz leitosa por sobre a paisagem. Já da quarta noite em diante, nascendo mais tarde pelo horário do relógio, ela vem perdendo brilho e intensidade, pois já lhe falta uma banda, carcomida pelos dragões da minguante.
   Olhou o relógio. Já chegavam as nove. “O tempo, se não voa, escoa e a ninguém perdoa.” Pediu mais uma cerveja. Depois voltou atrás: – Me traz um uísque duplo e baixa um pouco o som.
   O garçom, solícito, o atendeu. E agora a voz de um cantor embalava o ar, cantando em inglês “Love is a many splendor thing.” Do pouco que sabia de inglês, lembranças dos tempos de ginásio, conseguiu traduzir: o amor é uma coisa esplendorosa. Será que é mesmo? Ou será apenas uma ilusão passional que só é eterna enquanto dura? Quem escreveu isto foi o poeta Vinícius de Morais. Não foi? Conferiu mais uma vez as horas.
   Nisto teve sua atenção despertada para um pequeno foco de luz vermelha que balançava vagaroso sobre as ondas parecendo-lhe que vinha em sua direção. O que será?” – pensava. Contrabandistas? Não pode ser, pois se fossem não andariam com luzes acesas. Já sei. Deve ser algum pescador notívago que, por medida de segurança, acende uma lanterna vermelha para evitar ser abalroado pelos inúmeros barcos do amor – um serviço proporcionado pelos proprietários bar-restaurante, que os aluga para casais de namorados navegarem, aos pares, em noites de lua cheia.
– Garçom, mais um duplo, pediu.
    Agora ele já pôde perceber que a luzinha vermelha se aproximava. Era de uma canoa de pescadores impulsionada por remadas compassadas de três homens, que, tão logo aproaram, começaram a descarregar as tralhas de pesca e alguns sacos com o produto de um longo dia de trabalho: dourados, curimatás e matrinchãs, em bom número. E aproveitando a luz do bar que refletia na praia, puseram-se a repartir os peixes, já antevendo os lucros que obteriam, pela manhã, na feira da cidade, que ficava alguns quilômetros dali. Pela algazarra que os homens faziam podia-se notar estavam contentes. O sustento de suas famílias estava garantido, pelo menos por uma semana. “Com certeza eles têm mulheres e filhos, como costuma acontecer com estes pobres diabos. Quanto mais pobres, mais numerosa a prole” – pensava, enquanto observava os pescadores se afastarem, cada um com um saco de peixes às costas, conversando animadamente como se viessem de uma grande festa. “Parecem felizes” pensou. “E quem duvida?”
Após tantos anos de convívio, a separação em casamento de conveniência entre duas famílias, lhe pareceu muito natural. Os filhos, já adultos, entenderam. A esposa não ficara em dificuldades, já que ele passava-lhe a metade de sua aposentadoria e mais a casa que possuíam na cidade, onde ela continuou morando. Transferira-lhe ainda 50% da ações de uma metalúrgica, que lhe rendiam bons dividendos anualmente. Além do mais ela possuía bens de raiz: duas casas que recebera da herança paterna, cujos aluguéis passariam a ser de seu desfrute exclusivo.
   Quanto a ele, que já não suportava mais viver sozinho na chácara sem o tagarelar gostoso de uma voz feminina, a nova companheira serviria de lenitivo e entretenimento. A escolhida era uma mulher jovem aparentando ser de boa índole, solteira, pobre, pois trabalhava como arrumadeira para sobreviver. Se não era mulher de rara beleza, era de boa aparência e caprichosa nos modos e na aparência. Além de um olhar franco, demonstrava ser muito prestativa. Fatores que pesaram muito em sua decisão de iniciar as tratativas, algumas semanas atrás, logo após contratá-la para fazer a arrumação nas bagunças em que a casa da chácara mergulhara, nos dias em que estivera sozinho.
   Antes da abordagem para convencer a mulher a ir morar com ele na chácara, fizera um discurso cheio de rodeios, dizendo que não se considerava velho o bastante para sentir-se um inútil, nem um desprezado o suficiente para não pensar em uma união boa e duradoura com outra mulher. E que possuía uma casa com todo o conforto, e que desfrutava de uma vida que lhe permitia certas mordomias. Até algumas viagens, talvez. Dinheiro não era problema. Carinho e amizade eram com ele mesmo. E que, por fim, ele estava disposto a lhe fazer uma pergunta:
– Posso?
   A mulher, que neste momento estava espanando a poeira dos móveis da sala, sem parar com o que estava fazendo e sequer voltando-se para olhá-lo, respondeu com outras perguntas:
– Perguntar? A modo de que? Perguntar não ofende, não é?
– O que você responderia se algum dia eu lhe fizesse um convite para vir morar aqui comigo?
– Nossa! Nunca pensei nisso. Será que fica bem. E teus filhos? Tua mulher? O que vão pensar? – demonstrando surpresa, ela parou de espanar e balançando a cabeça para um lado e outro, como quem está em dúvida para dar uma resposta, murmurou:
- Não sei, não. Acho que não pega bem.
– Não é preciso me responder agora. Pensa antes. E esquece minha mulher e filhos, pois já estamos separados. E há muito tempo, embora morássemos na mesma casa era só para manter as aparências, mas já não... não dormíamos juntos há anos. Sabe?
   Depois desta abordagem direta, passaram-se alguns dias sem respostas. Ele fazendo todas as graças na tentativa de obtê-las positivas, e ela, esquiva, às vezes demonstrava que aceitaria de bom grado, mas não lhe dava vaza, nem abria o jogo.
–Não sei. Tenho medo.
   Porém, mesmo que tenha aceitado os vestidos novos que ele deixara pagos na loja para ela escolher, na hora em que ele apertava por respostas, a moça sempre tinha uma desculpa. Até que, lá pelas tantas, depois de uma destas abordagens, cada vez mais insistentes de parte do homem, pareceu-lhe que, finalmente, a moça baixava a guarda:
–Hoje não. Me espera no bar na sexta, à noite, talvez. Vamos conversar.
   Absorto nestes pensamentos, e já impacientando-se, ele bateu na mesa com a mão espalmada, levantou-se e foi até a balaustrada. Neste exato momento, debruçado no parapeito percebeu que, como que parido do escuro de lago, um barco estava chegando à praia, a mesma onde os pescadores haviam repartido os peixes. E do barco desembarcou um casal de namorados, de braços dados, trocando beijinhos apaixonados, entre risos e trejeitos amorosos. Quando se aproximaram mais, no lusque-fusque da luz que escoava do bar e o contra-reflexo da lua, que já ia alta no céu, ele pode perceber que a mulher que ele estava esperando havia chegado naquele barco.
    Então ele ficou observando o ambiente, o bar vazio, o lago prateado, o barquinho, o casal de namorados, o mesmo cantor cantando em inglês e quando olhou para o céu teve a impressão que a lua estava sorrindo.
(obrigado Yara Antonia)

Vinícius Lena
Enviado por Vinícius Lena em 17/08/2007
Reeditado em 14/11/2007
Código do texto: T612084