Mulher: vida tomada
Noite que demora a passar, o sol parece que resolveu demorar a aparecer. Despertava a cada hora que o relógio marcava seus espaçosos sessenta minutos como quem não tivesse mais tanto tempo a perder, como se a vida já tivesse lhe dado todas as chances para aproveitar. Marina tinha caído em si, como tanto sonhara suas colegas do trabalho, suas vizinhas da rua e a sua família inteira.
Muitos se perguntavam o que de tão especial vira naquele rapaz que a fez virar a cabeça e se mudar de vez para um pequeno apartamento uns dois bairros depois da casa da sua família. No início ela dizia que tudo valia a pena por ele, e que estava encantada com os seus cuidados, com as formas exageradas de dizer que ama. Suas amigas questionavam se o amor era tão fácil de ser encontrado assim, pois nem se conheciam direito. Se viram uma ou duas vezes num barzinho numa sexta-feira qualquer ao largarem do trabalho.
Logo a ausência no brilho de seus olhos chamou a atenção de suas companheiras diárias, mas ela jamais relatou algo contrário à paixão, ao amor, ao apego e as juras de amor constantes das quais sentia orgulho em relatar.
Pouco menos de seis meses de convivência, Marina chega com a mão machucada, mas rapidamente diz ser muito atrapalhada e tinha queimado a sua mão ao tirar uma panela quente do fogão. Isso não era nada demais, logo, logo passaria.
Até que numa segunda-feira, chegou ao trabalho com um olho aparentemente inchado, disse ser um colírio que tinha usado e causou certa reação alérgica. Cíntia logo entendeu que Marina estava passando por sérios problemas, silenciou diante de suas outras companheiras e decidiu chamar Marina para que tivessem uma conversa a fim de que ela dissesse realmente o que estava acontecendo.
Marina decidiu contar tudo, e o horror ia além do que sua amiga imaginara. Relata então que, tudo estava aparentemente bem, os dois viveram dias felizes, mas somente no início da relação. E que em pouco tempo a sua vida tinha se transformado num tormento sem tamanho, pois todos os dias, ao chegar em casa, o seu companheiro já está à sua espera, bastava apenas um segundo de atraso para ele levá-la até o banheiro, ligar o chuveiro para que vizinhos não escutassem seus gritos e machucá-la de todas as formas, diz ainda que as marcas que tem em seu corpo não se comparam as da alma e, que jamais teria coragem de mostrar-se inteira. A queimadura no fogão ou inchaço do olho são apenas sinais do que ela realmente carrega em todo o corpo escondido.
Suas palavras causavam certo de tipo de náusea e revolta em sua amiga. Como pode ouvir tal relato e ficar parada? Como ajudá-la naquela situação? Marina conta ainda que é ameaçada todos os dias por ele, não tem coragem de denunciar, nem mesmo deixá-lo, pois se tomar esse tipo de decisão colocará em risco a vida de toda sua família.
Depois de toda a conversa, Marina se sente mais aliviada, ouve os conselhos de sua amiga e promete que vai pensar a respeito. Não demora muito, no caminho para casa resolve ligar para sua mãe, dá sinais de que não está bem e de que precisa de ajuda. Sua mãe diz que irá ao seu encontro, mas logo ela a convence do contrário.
Aos pouquinhos ela vai ganhando forças. Todos os dias conversava com suas companheiras e o assunto foi se tornando familiar para todas que não viam a hora de vê-la livre de tudo aquilo que estava vivendo. A família foi avisada, mas sem saber ao certo a proporção do problema. Até parecia que a autoestima dela tinha voltado e a esperança de cada dia a fazia suportar mais um pouco até que tudo se arranjasse.
Passado alguns meses, Marina conversa com suas companheiras a respeito de seu fabuloso plano. Daquele mês não passaria. Tinha alugado um cantinho ali mesmo perto da fábrica, longe da sua família para que eles não corressem nenhum tipo de perigo e longe do apartamento onde morava para que ele nem pudesse procurá-la. Não levaria nada para que ele nem desconfiasse, nem a roupa ela fazia questão, queria mesmo era de volta a sua paz.
Tudo combinado. Aquela seria sua última noite de tormento e humilhação, não tinha como dá errado, pois sairia de manhãzinha como de costume com a diferença que não retornaria mais. Naquela noite ao retornar, o percebeu alterado, tinha bebido o dia inteiro e pedira para que ela fizesse companhia em sua bebedeira, exigindo que tomasse com ele as cervejas que estavam em cima da mesa, ela resistiu, mas logo cedeu, seria sua última noite ali mesmo.
Logo ele cai no sono. Ela pensa que foi bem melhor assim. Olhava a cada minuto para o seu relógio, mas o tempo parece que resolveu brincar naquela noite, massacrando os segundo e os minutos a deixando tensa.
Finalmente são cinco horas da manhã, lentamente Marina levanta para não acordá-lo, vai ao banheiro na ponta de pé. Antes de chegar lá, recebe um golpe de faca no pescoço e ali mesmo fica sem que haja tempo sequer para gritar, para sair. Não teve tempo de ter de volta a sua vida, sua paz.