A BICICLETA DE LEONARDO (Prêmio SESI-MG de Literatura 2017)
Quando o ultrassom apontou que viriam dois meninos, a mãe não teve dúvidas: Leandro e Leonardo. Singela homenagem de quem cultuava a recém-famosa dupla sertaneja, ouvindo exaustivamente suas músicas no velho rádio, enquanto cuidava dos afazeres do lar. O pai não foi favorável à ideia. Queria homenagear o próprio pai, avô dos rebentos, o Sr. José Ladislau, que falecera pouco antes da notícia da gravidez da nora. Assim, fosse um menino apenas, herdaria o nome inteiro, mas conforme viriam dois, evidentemente um se chamaria José e o outro Ladislau. Não houve acordo. Houve sim, muita discussão, muitas noites sem cafuné e outras tantas manhãs sem bolo de fubá no café. Até que o pai, cansado daquela peleja, aquiesceu ao desvario da mulher, com algumas condições: Um dos meninos se chamaria Leandro José, e o outro, Leonardo Ladislau. Dessa forma, eles teriam os nomes dos cantores e do avô ao mesmo tempo, satisfazendo o desejo dos dois. Trato feito. E nasceram os meninos, encabeçando o sexteto familiar que só teria o último membro doze anos mais tarde.
O tempo passou e os meninos cresceram felizes e saudáveis na rotina rural. Os dois se davam bem juntos. Brincavam, iam à escola, torciam e torciam muito pelo Flamengo, – embora genuinamente mineiros, herdaram do pai essa paixão de seu tempo de solteiro, quando trabalhara nos jóqueis do Estado do Rio - e gostavam praticamente das mesmas coisas. Ou quase. Leonardo tinha um desejo especial. Queria uma bicicleta. Não uma bicicleta comum. Queria uma moutain bike. Que por ali era a grande novidade da época, e todos chamavam de bicicleta de marcha. E Leonardo sonhava com o dia em que pedalaria radiante pelas estradas da comunidade e pelas ruas do pequeno município em sua linda magrela.
Isso passa, pensou o pai. Logo ele encasqueta com outra coisa, disse a mãe. Não passou. Não encasquetou. Meses se passaram e só se ouvia o Leonardo falar na bendita bicicleta de marcha. Desenhava nos cadernos. Guardava qualquer papel que viesse com um mero esboço de bicicleta impresso. Nem às cavalgadas e aos concursos de marcha – que antes gostava tanto – agora já não dava tanta importância. Bicicleta de marcha, bicicleta de marcha. Era só o que se ouvia nos assuntos do menino. Aos sábados, quando acompanhava o pai até a feira hortifrúti da sede do município, ficava vidrado, enfeitiçado, quando via algum moleque ou adulto passando com o objeto dos seus sonhos. Esquecia de pegar as verduras para as clientes e logo tomava bronca do pai:
- Acorda menino! Veio aqui pra trabaiá ou pra oiá pro tempo?
E Leonardo saia do transe por alguns instantes, mas logo voltava a se distrair procurando em seu raio de visão alguma bicicleta para admirar. Estava obcecado.
Na volta para casa, sobre a carroça vazia, Leonardo ia proseando com o pai. Rodeava, rodeava, até levar o assunto para o rumo de sempre:
- Ô pai… Se o pai ganhasse na loteria… O pai me dava uma bicicleta igual daquele moço que comprou as laranja, hoje?
- Craro que dava meu fio… Mas nem pra jogá na loto, tem sobrado dinhêro. – Respondia o pai, constrangido – Ôce mesmo tá vendo, como tá difícil as coisa. Se eu pudesse, já tinha comprado essa bicicleta procê…
- Eu sei, pai. Eu sei...
Leonardo meneava a cabeça em sinal positivo, engolia a seco e emudecia. Compreendia e não exigia do pai o presente que ele não podia dar. Ainda assim, sonhava – dormindo e acordado – com a tal bicicleta de marcha. Assim mesmo, no singular, marcha. Embora soubesse exatamente o número delas que compunham o sonho: dezoito. Leve para as subidas, pesada para momentos de pressa ou diversão – ou seja, apostar uma corridinha ou outra, coisa que jurava ele a Deus que nunca faria, é claro. Rezou, pediu a Deus e ao Papai Noel, chorou escondido… Ficou amuado. Ouviu broncas, conselhos e até fez tratamento de aguação – tomando chá de amor-perfeito por três sextas-feiras seguidas. Não adiantou.
Conforme o tempo passava e Leonardo não desistia daquele sonho, na impossibilidade de realizá-lo pessoalmente, o pai fez um trato com o menino. A partir daquele dia, depois da aula e das lições de casa, ele estaria liberado a trabalhar nas redondezas. Capinar, ser servente, pintar, buscar criação no pasto… E todo dinheiro que ele ganhasse, deveria guardar para comprar a tal bicicleta. Mas não poderia perder aula ou deixar cair as notas na escola.
O menino ficou radiante. E saiu oferecendo seus préstimos nas redondezas. Assuntando aqui e ali, descobrira que com cerca de uns trezentos dinheiros poderia comprar uma bicicleta nova como queria. Um servicinho hoje, outro amanhã… Uma semana cheia de afazeres para outrem. A notícia foi se espalhando e os tostões foram entrando. E Leonardo os guardava com a firmeza de um cofre de banco. Meses depois, muito trabalho depois, conseguiu juntar aquilo que estabelecera como meta.
Como na cidadezinha não havia lojas de bicicletas, Leonardo recebeu do padrinho a oferta de viajar com ele e comprar a bicicleta numa cidade maior da região. Não era a capital, mas possuía comércio diversificado e certamente teria o bem que o menino desejava. E assim foi. No dia marcado, Leonardo entrou cabine da velha camionete numa alegria só. E partiram para realizar o sonho dourado.
No caminho, entre uma parada e outra para vomitar, – o que não tirou a empolgação do menino que não tinha costume de viajar – Leonardo pensava e falava, não necessariamente nesta ordem, sobre as cores, modelos, marcas, câmbios, enfim, tudo o que aprendera sobre bicicletas. Os ouvidos do padrinho já estavam ardendo, quando finalmente chegaram.
O padrinho tinha coisas a resolver no banco e em outros lugares e deixou Leonardo de molho nas poltronas das instituições. Isso sim, foi um tédio. O menino sentado olhava com aquele olhar de súplica para o relógio e para o padrinho. E vendo que aquilo demoraria um pouco mais do que o imaginado, o padrinho sugeriu que Leonardo saísse para passear um pouquinho. Deu a ele as referências, um tanto mais de recomendações e soltou o menino rua afora.
A cidade não era das maiores. E na época, não era tão perigosa como é qualquer lugar nos dias de hoje. Assim, Leonardo, que não corria grandes riscos, pôs-se a andar pelos arredores a fim de encontrar uma loja de bicicletas e ir pensando qual comprar. Andou, andou… Não viu nenhuma loja de bicicletas por ali, mas viu uma grande variedade de outras coisas que lhe chamaram a atenção.
Passou por lojas de roupas, calçados, eletrônicos, materiais esportivos. Nesta última deu uma paradinha em frente à vitrine para ver as camisetas de futebol. Originais. De todos os times. Inclusive do Mengão. Ficou encantado. Chegou mais perto do manequim. Promoção, dizia a placa. Cento e cinquenta dinheiros. Cara pra danar, pensou Leonardo.
Encontrou logo adiante a área do comércio informal, conhecida como camelódromo. Seu pai tinha de estar ali, botinas, daquelas que ele tanto gostava, por apenas trinta e cinco dinheiros. Bonés que Leandro adoraria. Viu vestidos iguais aos da mãe, pelúcias que alegrariam sua pequena irmã, carrinhos que o irmão do meio faria a festa, roupas que ele mesmo estava precisando e outras tantas coisas que combinavam com alguém ou que alguém da família precisava. Prometeu a si mesmo, que no futuro, seria rico, para presentear a todos. E entre ofertas disso e daquilo, se desvencilhou da multidão e continuou sua aventura na cidade, sempre apalpando o bolso do dinheiro, como recomendou o padrinho.
Andou mais um pouco e voltou ao ponto combinado. O padrinho ainda estava resolvendo seus problemas. Leonardo decidiu esperar. Estava cansado. Absorto em pensamentos, cochilou na poltrona. Acordou com um sacolejo:
- Acorda, Léo! Bora comprar a bicicleta?
Era o padrinho, divertindo-se com a sonolência do garoto.
Leonardo sorriu de volta e levantou-se num pulo, animado. Correu até a camionete e entrou. Seguiram ruas afora até encontrar a loja de bicicletas. Adentraram ao recinto. Quanta variedade! Leonardo não sabia para que lado olhar. Veio o vendedor:
- Posso ajudar?
- Tamo quereno uma bicicleta de marcha pro meu afilhado aqui. - Respondeu o padrinho.
- Alguma preferência? Marca? Modelo? Faixa de Preço? - indaga o vendedor.
- Na faixa de uns trezentos, né Léo? - Respondeu o padrinho.
O menino balançou a cabeça, confirmando.
- Podem vir por aqui. - Indicou o vendedor apontando a direção. - Temos essa aqui, trezentos e quarenta, à vista, trezentos e seis. Temos esta outra, duzentos e noventa e cinco, aquela ali, duzentos e oitenta, linda, não acham? - E foi apresentando inúmeras opções.
Leonardo seguia-o distraído. Introspectivo. Quando o vendedor falava com ele, balançava a cabeça, sorria mecanicamente e dizia vagamente:
- É...
- E então? Alguma preferida? - Pergunta o vendedor, com um sorriso profissional. - Vamos fechar com qual?
- E aí, Léo? - O padrinho transferiu a pergunta. - Qual?
- Hum… - o menino sorriu hesitante – Não sei…
- O moleque tá indeciso. No meio de tanta opção, fica até perdido, né Léo? – justificou o padrinho ao vendedor – Gostou daquela vermelha ali?
- Não sei… - Encolhia-se Leonardo.
- Que tal aquela preta com verde? Está na promoção! - Interviu o vendedor – Vinte e uma marchas! Pelo preço de uma de dezoito. Que tal?
- Não sei… - insistia timidamente o menino.
- Vamo, Léo! Decide! - Pressionou o padrinho. - Daqui a pouco o moço vai fechar a loja e ocê ainda não escolheu.
- Quer ver alguma outra? – Ofereceu o vendedor, solícito.
O menino fez silêncio. Pensou por um instante. Os dois adultos o observavam atentamente.
- Carece mostrar outra não… Já decidi. - Responde Leonardo.
- E qual será? - Sorri o vendedor.
- É Léo. Qual ocê vai querer? - Questiona o padrinho.
- Na verdade, num vô querê nenhuma! - Dispara o menino. - Vou querê mesmo é aquela camisa do Framengo que eu vi na loja lá atrais.