O FORRETA

Detive-me para apreciar o rebanho nutrido que pastava à margem da estrada. A casa, recuada, carecia de uma demão de tinta. Era cercada de árvores vicejantes, ainda que mal cuidadas. A poda, desleixada, deixava os galhos em desalinho. A mangueira estava ainda em floração e os três pés de cajueiro vergavam os galhos ao peso dos pedúnculos, quase tocando o chão. Contudo, foi no velho pé de figueira-Benjamim que me detive.

Eram recordações da infância. Lembrei-me da que ensombrava o terreiro do meu avô paterno, onde os netos brincavam, os trabalhadores afiavam as ferramentas, encilhavam animais, faziam a sesta ou tiravam um dedo de prosa. Havia quem preferisse fazer refeição lá mesmo, por ser o local ventilado. À sombra do velho benjamim, à tardinha, reunia-se a netarada para brincar. A densa copa permitia seguro esconderijo para quem tivesse coragem de escalar. O gato Chicó apoiava-se no encontro de dois galhos, há mais de três metros de altura, e lá dormia a tarde toda ou, até a meninada expulsá-lo. Quando acuado, subia para os galhos mais altos ou pulava e fazia carreira.

Suas raízes aéreas eram protuberantes que, sem saber, chamávamos de veias. Realmente, eram as veias que transportavam a seiva. Algumas eram semelhantes a varizes, outras apareciam em formas de pés, mãos ou o que quiséssemos que fosse. Quando sementava, afluíam, para o banquete, pássaros, insetos e rastejantes.

Desci do carro e postei-me ao umbral do portão que distava, aproximados, trinta metros da edificação. Ao longe via-se um vulto que, de tão imóvel, imaginei objeto. Quando bati palmas o volume se moveu. Pedi licença para entrar e, sem esperar resposta, que talvez nem viesse, solicitei que prendesse o cachorro e desatei a corda que atava o portão de madeira. Embora dizendo que já me conhecia, cumprimentou-me por entre os espaços da grade de ferro que reforçava a segurança da porta principal. Salustiano perguntou se eu queria entrar, mas, com uma voz tão desencorajante que hesitei. Todavia, assenti com a cabeça que, se não fosse a grade, já estaria na antessala. Tencionava pedir água e ficar prosando em segurança. Estava aguardando um parente para seguir viagem.

Solicitei permissão para olhar a vaca recém-parida, cujo úbere disputava espaço entre as pernas da parturiente. As veias proeminentes, ramificavam-se em terminações nervosas de menores calibres. As tetas, túmidas pelo excesso de colostro, roçavam galhos ressequidos, com risco de ferimentos. Ainda lambia a placenta.

Vi também alguns bois na engorda. Estavam confinados num estábulo de onde, abrindo-se a porteira, os animais caminhavam por um corredor de cerca que desembocava no pastoreio, sem necessidade de serem tangidos.

- Gado gordo, hem seu Salustiano?!

- Pois não. Respondeu ele, sem que eu soubesse se confirmava ou negava.

- Terra fértil. Vê-se pelas árvores. Não é seu Salustiano?

- Pois não.

Depois de mais duas ou três respostas idênticas, percebi que havia algo de errado. Salustiano era surdo ou, pelo menos, ouvia muito pouco.

Com a constatação sumiram as dificuldades. Aprendi falar com mudos desde muito novo. Manha avó era surda muda, e eu sabia ser contraproducente falar alto. O segredo era falar baixo, com as palavras bem pronunciadas e de frente para o interlocutor.

Movi a cadeira, discretamente, para que ele não percebesse e refiz as perguntas. Dessa vez, encarando-o.

- Gado gordo, em seu Salustiano?!

- Gadim mago e ruim, respondeu. Pensei que tivesse brincando...

- Que nada! O senhor é que está sendo modesto. Seus novilhos dão inveja e as vacas, girolandas, devem ser excelentes leiteiras.

Falei porque conheço as raças bovinas, mesmo quando cruzadas. Ainda que essas habilidades não me sejam mais úteis. Também sei estimar o peso desses animais com precisão britânica. Usava calças curtas quando aprendi comprar boi no olho, como se dizia, acompanhando meu pai na compra de gado.

Convém fazer uma digressão para contar um “causo” que se deu com o ex-presidente João Goulart. Quem leu sobre ele, sabe que foi um dos maiores pecuaristas da sua época. Era rico antes de entrar na política. Depois, sua fortuna deve ter aumentado, mas, não é disso que pretendo tratar. Pois bem. Li, num desses blogs de curiosidades, que uma vez ele foi visitar um correligionário do seu Estado e, ao se aproximar da fazenda, de helicóptero, avistou uma grande mancha branca na terra. Era um rebanho de novilhos nelore. Fanático por gado, ordenou que o piloto voasse o mais baixo possível. Mirou o gado e disparou: mil e duzentas cabeças. Os subalternos aquiesceram para agradar o chefe.

- Quem já viu?! Isso era jeito de contar gado?! Disse um deputado que tinha intimidade com o presidente. Após os acertos políticos, já quase na hora de sair, o Presidente virou-se para o fazendeiro e perguntou: - compadre, têm quantos bois naquele pasto que a gente sobrevoou?

- Mil duzentos e vinte. Respondeu o fazendeiro.

Mais de 98% de acerto. Naquelas condições, era impressionante.

Contado o “causo”, convém prosseguir o diálogo com seu Salustiano.

- Pois sim. Uma ou duas são razoáveis, as outras, muito ruins.

- Sítio bonito, terra fértil. Vê-se pelas árvores. Não é, seu Salustiano?

- Pois o senhor está enganado. Terra ruim. E, até, me arrependo por haver feito a tapera aqui.

Tentei mudar o rumo da conversa, mas a ladainha era a mesma. Ou reclamava do que não tinha, como por exemplo, cem mil reias na poupança, ou desvalorizava o que já havia conseguido. Fosse sanfoneiro, seu Salustiano só tocaria choro.

Era domingo. Aproximava-se do almoço. É claro que não fui lá pensando nisso. Nem o conhecia direito. Estava, apenas, aguardando uma pessoa e, também, repito, desejando beber água. Fiquei uns quinze minutos sem saber o que falar. Notei que, durante aquele tempo, não apareceu ninguém além dele. Aquilo era incomum nas famílias de sitiantes. O normal é que assome, logo, uma senhora simpática oferecendo café. Nos domingos, filhos e genros levam os netos para fazer algazarra na casa dos avós. Casas haviam por perto e eram dos filhos, fiquei sabendo, mas ninguém saia fora. O silêncio irritante, além da clara percepção da ausência de cuidados femininos, com tralhas na sala, quando deviam estar na cozinha, fez-me concluir que, seguramente, ali não havia outra alma.

Assaltou-me o medo do risco que corri, quando pedi que prendesse o cachorro e ele respondeu “pois não”. Sorte minha, Salustiano não criava cachorro nem gato. Na sua avareza, não via utilidade em desperdiçar comida com bicho que não se come ou, melhor, que não se venda para outros comerem. Também não criava gado miúdo ou galináceo. Constatou, ainda quando era casado com dona Arminda, que a tentação de matar galinha para consumo próprio, acabava prejudicando a rentabilidade do criatório. Vem daí o seu ódio pelo Natal e todas as outras datas comemorativas. Era prejuízo na certa. É claro que desconhecia o étimo das palavras, mas, na sua rudeza, intuía que as quatro primeiras letras da palavra “comemorar” significavam desperdícios.

No conto de Molière, o avarento Harpagão é ridicularizado porque processou o gato do vizinho, por haver comido o resto de um pernil de carneiro. Salustiano, perdoem-me o trocadilho, não dá carne a gato. Também, mais esperto que o sovina do conto O Avarento, para não se indispor com os vizinhos, furta-se de guardar pernil de carneiro ou qualquer outro tipo de carne.

Gostava dos bovinos que iam da engorda para o abate e, depois, para a poupança da Caixa. Contou, entristecido, que outrora tivera quase cem mil reais, mas a mulher, perdulária, cismou de comprar televisor, vestido novo e fogão a gás. Tudo futilidades da desmiolada, lamenta-se. Queria até comer carne todo final de semana. A gota d’agua foi a compra da geladeira que só prestava para gastar energia.

- me desfiz das duas. Referia-se à mulher e à geladeira, e suspirava aliviado. Fez algumas contas mentais, imaginando quando tempo ainda seria necessário para recuperar o prejuízo.

DILAMAR
Enviado por DILAMAR em 04/08/2017
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