Uma Guerra Silenciosa

Ela se chamava Ana. Dona de um belo corpo, um cabelo enorme, era morena e um pouco gorda. Era estudante, tinha 17 anos. Era uma quinta-feira em que Bianca, sua colega de classe, lhe havia pedido, sedenta de coração morno, que lhe emprestasse um livro. Mas era um livro especial: era grande, belo, largo e uma perdição de amor. Aquele livro de páginas já meio amareladas, tal qual um deserto.

De súbito espasmo de defesa de quem tem tido tirado de sí o único filho, vasto. Tomada por um susto que ao se entender a situação, seguiu-se tomada por uma raiva silenciosa. Ela não se mostrava.

Cruzou os braços com o pedido: bem de frente para aquela que, chorando migalhas, lhe pedia o empréstimo de um filho seu. E até hoje ouve-lhe a voz.

Vê-se então, sem voz e de mãos frias, nocauteada por uma bala perdida do impossível.

-Eu vi fotos dele. Você o tem, não é?- dizia Bianca.

Aquela menina jovem, mais jovem do que ela (muito embora tivessem a mesma idade), menina disposta a tomá-la com o tiro de uma doce e inegável inconveniência.

Mas teve um jeito.

-Eu acabo de emprestá-lo a uma amiga de longe. Quem sabe você me pedisse-o há uns dias, e eu lhe entregaria- disse Ana.

Num súbito, tinha semblante meio calado. Era silenciosa a dor de fracassar. Na verdade gritante, também.

Isso vem de angústias corriqueiras. Tão desgraçado incômodo, quanto meu. É meu fardo

[...]

Eis que um dia, Ana leva à aula, dispersa, o tal livro. E ao vê-lo em suas mãos ingratas e desonestas, -tão hermético livro, tantas vezes lido por ela, que era hermética também-, mira à menina liberta, de cabelos tingidos em azul; Bianca conversava, de mãos nuas tal qual a alma desnudada de Ana. Bianca tinha à disposição o mundo inteiro e não sabia.

Ana levanta, de passos incertos e cambaleantes, se dirige até Bianca, afim de entregar-lhe o livro que lhe foi um dia todo um auditório, onde dançava tantas vezes, seu coração.

Ele continuava pulsando. Agora um pouco mais forte, aliás... ela podia ouvir o próprio coração bater. Era como ouvir o estalar da própria brasa da alma. Sentia-o dançar por todo seu corpo, outra dança agora. A dança de uma libertação.

Ana caminha então, senhores, assim como lhes falo.

Meu coração bate agora forte também... doem-me as juntas.

Minhas mãos suadas: eu mal respiro. É um filho que masce, a arte.

E Bianca aceitou feliz a surpresa. Ela havia, também, se soltado de suas amarras.

___Carolina Oliveira.