Quem se esforça mais?

QUEM SE ESFORÇA MAIS?
Miguel Carqueija



O grande Rodolfo, o célebre cavaleiro e herói de tantas aventuras, retornou à sua casa ao anoitecer e depois de uma rápida farra com a filharada chamou a esposa em altos brados:
— Ó Filomena, o teu homem chegou! Tive um dia muito trabalhoso e estou mais faminto que um urso que acabou de hibernar! O que temos para o jantar?
Ela apareceu com um avental, um colherão na mão e toda despenteada:
— O que temos, grande cavaleiro? Nada, absolutamente, a não ser que queiras comer pão com cebola! Ainda não tive tempo de aprontar o jantar!
— Mas como assim, ó mulher? Tiveste o dia inteiro, o que andaste fazendo que não me aprontaste a janta?
— Ah, queres saber? Diz primeiro o que tu fizeste!
— O meu dia foi ocupadíssimo! Expulsei um bando de desordeiros da aldeia; salvei uma donzela presa numa torre por um barão malvado, e para isso precisei derrotar o ogro que ficava por lá de vigia; afugentei um bando de lobos que estavam atacando na estrada; travei combate com uma súcia de assaltantes; escoltei duas velhinhas por um caminho perigoso; salvei crianças de se afogarem; consertei o dique que estava ameaçado de romper; na volta para casa ainda me bati com um dragão cuspidor de fogo e o pus em fuga com o rabo entre as pernas. Não estás vendo que estou todo rasgado, com manchas de sangue, queimaduras e a espada quebrada na ponta? Só parei umas duas horas para almoçar na taverna da lagoa com um grupo de amigos, onde comemos um estufado de carneiro com farofa e bebemos algumas garrafazinhas de rum. E tu, mulher, o que andaste fazendo que nem aprontaste uma simples janta?
E a resposta indignada veio no ato:
— Ah, o que andei fazendo? Pois enquanto estavas te divertindo por aí afora eu lavei toneladas de roupa suja, passei tudo a ferro, faxinei a casa toda, aposento por aposento (e ela tem três andares), cozinhei para o almoço (inclusive fiz um assado de bisão), levei as crianças ao colégio e as trouxe de volta (e nunca é demais lembrar que elas são seis), dei comida a todas elas, ainda mudei a água e dei de comer aos teus benditos (para não dizer outra coisa) falcões, peguei uma dúzia de baldes do poço, porque ainda não mandaste instalar água encanada, costurei uma porção de roupas rasgadas, reguei as plantas e árvores, colhi as maçãs, adubei a terra da horta, ajudei as crianças a fazerem o dever de casa, despachei uma porção de cobradores que te procuravam, preparei uma torta de avelãs para o lanche, ordenhei a vaca, alimentei as galinhas, passeei com os cachorros e depois catei as suas pulgas, tirei os carrapatos da vaca e da égua, consertei o portão que estava quebrado e corri com os corvos da plantação uma dúzia de vezes. E agora, se queres mesmo jantar, fica tomando conta dessas pestes dos nossos filhos para que eu consiga cozinhar!

Rio de Janeiro, 29 de junho de 2017.

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 29/06/2017
Reeditado em 20/05/2023
Código do texto: T6041096
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