O campônio e o burro

- Seu BURRO! Olha o que você fez!

Estava, o coitado do burro, atrelado ao carro de boi que ficara dependurado sobre o pontilhão por falta de destreza na condução do veículo por parte de Anastácio – fique, pois, o dono do burro desde já apresentado.

Era meio-dia, na intensa soalheira em que até os sons parecem amainar, salvo o estridular de um e outro besouro, Anastácio estava indignado, suando aos borbotões e resmungando com o burro. O dono deste resolvera levar uma porca no cio para pegar cobertura com um cachaço de outro morador daquele rincão. Ao cruzarem por uma estreita ponte, no entanto, uma das rodas da carroça descambara, o veículo se inclinara e estava prestes a tombar.

O burro, com o costado suado e olhar assustado, esticava pescoço e jarretes, mas todo seu esforço para puxar a carroça do escolho restava baldado. Mesmo com a ajuda de seu dono, por mais que ambos tentassem, não conseguiam erguer a roda para tirá-los da situação vexante. Para complicar, a porca, Gertrudes – conste-se, para ciência acertada, que todos os animais de Anastácio tinham nome, apenas do infeliz burro tinham se esquecido, pois permanecera simplesmente burro –, como se ia dizendo, Gertrudes, a porca, escorregara justamente para o canto da carroça que mais se encontrava inclinado ao ribeiro. Além disso, já emporcalhara todo o carro. Mesmo assim, permanecia alheia a tudo e, sem mesmo entender o que se passava, ficava erguendo seu focinho e farejando os ares das proximidades, quiçá tentando adivinhar o motivo de se ter interrompido tão interessante passeio.

- Tivesse me escutado, seu burro, nada disso teria acontecido!

Para não se fazer juízo errado da situação, note-se que, pelo que até aqui vai, o carro resvalara para o lado do ribeiro por falta de Anastácio, e não do burro. Há de se ter, pois, certa compreensão com o nosso herói ao deitar a culpa no quadrúpede. A situação já era vergonhosa para quem se tinha por bom condutor de carretas, assumir a falta de jeito no conduzir do carro não viria bem ao currículo do bom camponês Anastácio.

Já o burro permanecera calado para demonstrar sua irresignação, ao menos assim pareceu, pois nada falou, não que já o tivesse feito. Obviamente, o que se quer dizer é que ficou tão calado que nem mesmo ornejou. Voltou, o burro, seus grandes e inexpressivos olhos ao dono, para ver se este tomava uma atitude que fosse além do agastamento com impropérios e das ofensas que lhe dirigia.

Olhou o burro também para Gertrudes, agora com olhar significativo, como que a dizer que ele, burro, era o que menos tinha que ver com toda aquela embrulhada. A obesa Gertrudes estava na gênese dessa grande trapalhada, não fosse o apetite sexual dela, estaria ele agora pastando mansamente no potreiro sob as sombras da guajuvira. Sentia-se o burro injustiçado por sempre lhe impingirem as culpas.

Anastácio, alheio às divagações do burro e vendo que a questão não se resolvia, começou a matutar sobre como tirar o carro de boi do encalho. O jeito certamente seria aliviar o peso do carro, e a questão foi justamente pesar sobre a gorda Gertrudes.

Tirou Anastácio o tampão da parte da frente da carroça para ver se por ali desapeava Gertrudes. Se retirasse o tampo de trás, livrava-se fácil o carro dos excessos, mas ia-se a porca ao brejo, mais precisamente, ao regato. A questão, com o tampão da frente retirado, era animar Gertrudes a dar uns passos em aclive e fazê-la desembarcar. A tarefa não se mostrava fácil, uma vez que, como já pintado, a porca dispensara suas necessidades, sólidas e líquidas, no soalho do carro que agora estava liso como sabão. Estendeu-se Anastácio por sobre a lateral do carro e começou a dar tapinhas sobre o lombo de Gertrudes. Ela, porém, como se encontrava com os humores alterados em função do cio, sentiu uma sensação agradável e quente percorrer-lhe o corpo ao sentir as mãos de seu dono nas costas, semicerrou os olhos e permaneceu imóvel, quase em êxtase.

Notando a inutilidade de tentar convencer Gertrudes a apear do carro por esses meios, olhou Anastácio para o burro, como que a pedir conselho, e julgou notar certa contrariedade no asinino pela maneira com que soltava o ar pelas ventas e pelo teimoso mutismo em que se mantinha.

Gertrudes, privada dos agradáveis tapinhas de seu dono, sentiu-se incomodada, ainda mais por que o sol já começava a lhe sapecar o lombo alvo e não é que começou a se agitar tanto que o tampão traseiro do carro de boi se soltou. Anastácio e o burro mal ouviram um estalo e a porca já estava lançada à sanga, que em pouco transformou-se em charco com o pisotear e o chafurdar de Gertrudes, acabando ela mesma a se meter em atoleiro.

O burro, sentindo o carro mais leve, reuniu suas forças esmaecidas, deu um puxão, sentiu um solavanco e eis que desencalhada estava a carroça.

Nesse instante, ouviu-se o trotear firme de cascos que se aproximavam. Anastácio, com a mão estendida em aba logo acima dos olhos para não se lhe ofuscar a vista, viu aproximar-se ilustre morador montado em seu corcel negro, que em pouco, estava junto a eles.

- Boa tarde, seu Anastácio, o que se passa por aqui?

O burro, como resta a esse animal se portar em tal evento social, murchou ainda mais suas orelhas já caídas, pronto para ouvir mais uma saraivada de desaforos por parte do seu dono.

- Boa tarde, Senhor, íamos passando e damos com essa porca metida aí nesse charco. Ficamos nós dois matutando, modo de dizer, claro, um jeito de tirar essa estúpida desse lamaçal.

O burro, ouvindo as palavras de Anastácio, deve também tê-las entendido, pois ergueu pescoço e orelhas e fez pose de alazão, perdoou impropérios e sentiu-se honrado pelo senhorio. A este pareceu ver úmidos os grandes olhos do burro, julgou até notar uma lágrima caindo.

Dimas A Reichert
Enviado por Dimas A Reichert em 10/04/2017
Código do texto: T5967238
Classificação de conteúdo: seguro