O miserável

Passara o laço no pescoço. Parado sobre uma pedra ligeiramente oval, os pensamentos agora sustiam-lhe a ação. Duas braçadas acima, a corda estava presa num robusto galho de cinamomo. Era só dar um passo e iria ao mundo de Caronte. Revisou novamente os elementos do derradeiro engenho. A soga era de bom filamento, o laço fora bem preparado e corria fácil. Na outra ponta, o baraço da morte estava firmemente atado ao galho da cúmplice árvore, um braço estendido para lhe acelerar a síncope fatal. Com o avanço de um pé, encontraria o vazio. O laço imediatamente apertaria a garganta, viria a asfixia, o desmaio já antes de morrer. Já não sentiria nada. A morte. Morto, o corpo continuaria com aquele movimento pendular por alguns minutos...

- Bando de abutres! Pensam que vão tirar até meu último centavo, idiotas! – e começou a rir alto, feliz do fim que engendrara para não saldar seus credores.

Cirilo odiava sua posição social. Era do tipo de homem – pensava ele – que deveria ter nascido rico, talvez em um grande centro urbano. Quiseram os céus, porém, que nascesse em uma família de simples campônios. Injustiça divina!

Seu nascimento enchera de alegria a alma simples de seus pais. Logo nos primeiros anos, orgulhosos, já viam um futuro de glória para o rebento.

- Veja, querida, como ele é esperto! Olha como repara em tudo, parece que vai tirando medida! Há de ser homem dessas ciências complicadas! Há de ser! – dizia orgulhoso o pai.

O espírito analítico, muito cedo notado por seus pais, usava-o Cirilo para medir-se com os demais. Viver na maranha do trabalho árduo e de parcos recursos era-lhe verdadeira aflição. Perdia-se em conjeturas. Seu destino não poderia simplesmente ser o de continuar a sina de seus pais e avós na vida dura do campo. Embora a vontade em Cirilo fosse gigante, a ação era tacanha. Exigia de quem podia, condescendência esperava dos demais. Gostava de ter, não partilhava, muito menos dava. Muito mais do que fruto do trabalho e empenho, uma vida afortunada era-lhe merecimento por destino.

Em tempo de escola fora aluno medíocre. Mesmo não tendo aprendido muito, via-se esperto o bastante para construir-se um grande futuro. Queria melhor vida, mas não ia além da quimera. Sua vida era uma religiosa espera.

Andou o tempo. Os pais de Cirilo morreram, muito cedo até, de desgosto, suspeitaram alguns. A terra que restara não era tanta, nem os animais muitos. Não tendo mais os pais a lhe prover a subsistência, Cirilo viu-se obrigado a pôr mãos à obra. Aos poucos, porém, terra e animais estavam empenhados. Acabou dando os burros na água, melhor, com os credores batendo à porta.

Seu Brandão, principal credor, ameaçava executá-lo na justiça se em seis meses não pagasse o que devia.

- Logo o Brandão, esse desgraçado! – pensava consigo Cirilo. Não lhe entrava na cabeça como um homem daqueles fosse conhecido como trabalhador abnegado e grande benfeitor da comunidade – É um muquirana, isso que é! – e Cirilo lembrou tê-lo visto na missa, rezando com todo fervor a oração em que o Senhor Jesus ensinara a perdoar as dívidas dos outros para alcançar o perdão das próprias – Parecia um santo! E agora esse fingido ainda tem o desplante de vir à minha porta cobrar-me exorbitâncias.

Vendo que estava arruinado e que os credores implacáveis eram todos vazios de compaixão, resolveu dar cabo à humilhante situação.

Matar-se-ia!

Não tanto por ter ficado na completa ruína, mas para não ter de pagar a quem devia. Ser pobre já lhe era inaceitável, pagar à canalha dos credores que o haviam arruinado, não suportaria.

E é por esse motivo que o encontramos em seus instantes finais, dando azo aos últimos pensamentos.

- Pena que não posso ver a cara do Brandão quando souber de minha morte...

Não se pense que Cirilo ficava divagando para estender a vida diante da hesitação. Ledo engano. Nunca estivera tão resoluto! Preferia morrer a pagar os que lhe cobravam.

Enfim chegara o derradeiro momento. Súbito, uma fração de segundo antes do passo derradeiro para suspender a vida, lembrou-se de Teobaldo:

- Mas que sacana! Quase me prega uma peça o malandro! Se me descuido, vou dessa e ele fica a se rir, sem pagar o que me deve! – pondera Cirilo num momento de quase inspiração filosófica – A que ponto chega o ser humano para meter treta aos outros!

Cirilo lembrara-se de uma junta de bois que negociara com Teobaldo e que até o momento não lhe havia pago de todo. Nervoso, com as mãos trêmulas, tira o laço do pescoço, desata a corda do galho, enrola-a, mete-a debaixo do braço e vai-se para casa recriminando-se pelo descuido:

- É preciso manter olhos bem abertos, senão até os que se dizem amigos passam-lhe a perna. Uns pilantras, todos! Por um triz não me meto num logro!

E assim andou o dia da quase morte de Cirilo. Foi-se embora com a ideia fixa de cobrar o que Teobaldo lhe devia, nem que para isso tivesse de lhe arrancar até o último tostão.

Dias depois, correu notícia que Teobaldo se suicidara. Tinha sido encontrado enforcado num grosso galho de cinamomo.

- Pobre homem! – lamentaram – Devia estar cheio de dívidas.

Cirilo, por sua vez, ponderou de si para si:

- Quem diria? O Teobaldo! Não é que o velhaco também me passou para trás. Miserável!

Dimas A Reichert
Enviado por Dimas A Reichert em 07/04/2017
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