O “Úbero”!
 
Mas logo agora?
Disse ela, contrafeita, estacionando o gesto de passar seu desodorante diário.
Acabara de sair do banho e este era o seu ritual cotidiano, iniciado bem cedo, assim que levantava. Teria, deste modo, mais tempo para suas próprias demandas.
Glória gostava de ler. Passava horas nesta atividade, a da sua maior atração. Depois do almoço, a cochilada, a que nunca se furtava e então sim, as suas idas sistemáticas aos cinco shoppings da cidade, a cada dia um, revezando sempre. Voltava exausta, mesmo que comprasse apenas uma echarpe, um pequeno pote de creme, ou uma escova de dentes nova. Ou nada...
Depois do lanche franciscano, para não engordar, deitava e dormia. Não variava seus hábitos e seguia à risca, sim, essas suas manias. Nunca mudava. Seus almoços, todos os dias, menos quinta-feira, dia da visita do sobrinho, eram no Restaurante por Quilo Sol de Abril, na esquina seguinte à sua casa.
Solteira convicta, nem sonhava mais com os braços de um homem apertando o seu corpo ou com palavras ditas ao ouvido, proporcionando arrepios que, imaginava agora, ainda seriam deliciosos. Sabia disto pois em tempo passado, lá na ida juventude, seu próprio corpo se manifestava e reagia, mesmo sem estímulos externos, experimentando fugidias sensações, hoje meio esquecidas. Mas agora, não mais despontavam! Ao menos não na mesma proporção...
Era uma mulher estranha, a Glória, pois bem poderia ter dado ao seu corpo mais, muitas mais satisfações. Não fez!
 
Já vou, já vou, falou irritada, ao passar pela sala, reagindo às palmas insistentes no portãozinho de ferro. Abriu a janela e registrou Nina, a vizinha do lado, baixinho, gordinha, cabelos pretos, curtos e de pequenos cachinhos.
Já sabia o que seria o pedido. Era sempre isto...
 
“Dona Grória, a senhora se incomoda de emprestar o cerular: preciso de chamar o Úbero. No meu, sabe que ele é bem veinho, e feinho,  o Vartinho não consegue colocar o pricativo...ele disse que é anssim mesmo, eu num endendo dessas coisa...é um tantim de nada, não demora nem uma tisca...A senhora pode imprestá? A senhora telefona prum Ubero vir pegá a gente, nóis temo o médico do Vartinho, aquele de todo meis... eu num sei meche bem nos número...dispois a senhora deixa eu ver ele caminhandinho pra cá, digo, o Úbero...eu acho tão bunitinho, ele anssim, caminhandinho pra gente pegá ele”...
 
Aborrecida, Glória avisou que iria pegar o celular e desceria até o portão para executar a solicitação de Nina. A inconveniente Nina, ia pensando ela, a caminho do quarto.
Apanhou o celular com todo cuidado e voltou sobre seus próprios  passos.

Este aparelho, é preciso que se diga, era um dos orgulhos de Glória. Por sugestão do único sobrinho, o comprara em dez prestações. Era, senão de ponta, como então lhe disse  Márcio, ao menos um ótimo telefone. Ele colocara Ínternet, mas a ela isto pouco servia. Só gostava de fazer Palavras Cruzadas e de ligar para as amigas da Novena das Sextas, na Igreja. Fazia isto todos os dias, no finzinho da tarde, outra das suas grandes e indispensáveis distrações.

Quem gostava da Internet era o sobrinho, que almoçava uma vez por semana em sua casa. Nestes dias ele, mexia no aparelho com seus dedos sabidos, rápidos e creia-se, até ria sozinho.
Ela de nada entendia, mas gostava daquilo. Seu celular servia para agradar ao sobrinho, única pessoa de uma família em que não existia mais ninguém.
A mulher de Marcio não gostava dela, e era correspondida nesta ausência de bom sentimento. Jamais ia a sua casa.  E se pudesse influir, ele também não iria.
Mas não conseguia demove-lo. Além disto, ele não ia lá por afeto, era um tipo apático, ia apenas interessado no almoço, nestes dias, sempre, sempre macarrão com carne moída e salada de alface, feitos por ela, a tia, único dia em fazia a comida.
Sim, e pelo telefone, que ele não possuía!
 
Glória subiu os dois pequenos degraus de acesso ao portãozinho de ferro saiu para o  lado de fora, ao nível de Nina. Esta esperava com os olhos brilhando e esfregando as mãos uma na outra, ansiosa.

Começou a discar. Seu sobrinho havia ensinado perfeitamente como ligar para chamar um carro. Ela não usava isto para si. Utilizava costumeiramente o ônibus que tinha uma parada bem à esquina de sua casa, e fazia seus trajetos com bastante comodidade. Era muito econômica, embora possuísse boa quantidade de dinheiro guardado da pensão deixada por seu pai (esta Poupança era outro dos interesses de Marcio... no caso de Glória vir a faltar. Seu único herdeiro! "Convinha manter estreito  contato"...).
E também, era apenas ele quem  chamava sempre por este serviço de transporte.
A tia pagava, com deslumbrado sorriso no rosto sem o sorriso da vida....
 
Quando a pequenina imagem do carro apareceu na tela, Nina se postou bem ao seu lado, rente ao seu corpo. Glória podia sentir o cheiro de comida recém feita exalar de seu corpo. E em rápida e furtiva olhada, perceber que os cachos do seu cabelo eram engordurados. Já sabia que isto era usual.

“Olha só dona Grorinha, olha, olha o automovinho, que coisa bem boitinha...andano, dona Glória, andano por ali,  no risquinho. Nossa, dona Grória, mas comé que pode isto, a gente vê  o carrinho andá? Num credito numa coisa dessa, a senhora sabe? Num credito, dona Grorinha....Num canso de fala, devo demais para senhora, prece seu cerular, devo demais...num sei como agradecê!”
 
Neste exato instante, no auge do entusiasmo, levou um da mão ao celular, querendo apontar o carrinho que tanto a alegrava….
Ao ser estabanada em seu gesto, esbarrou com certa força na mão de Glória.

Esta, que não tinha o celular devidamente preso em suas mãos, tentando deixar que Nina visse o “carrinho do Úbero”, sem conseguir equilibrar o aparelho, derrubou-o pesadamente no calçamento de pedra.
Espatifado em três pedaços, ali estava o celular sem conserto...
Com as duas mãos colocadas em concha sobre o rosto, Glória, quase chorando, via o que restara do seu tesouro...

Nina? “Perna para que te quero”...Em disparada, saiu correndo e gritando:
“ Nossa! Valha-me Deus, Nosso Sinhô... Quebrô o Úbero... quebrô o Úbero da dona Grorinha!
 
Na esquina, bem ali no Restaurante por Quilo Sol de Abril, o belo e luzidio carro preto fazia a volta e entrava na rua!
isabel Sprenger Ribas
Enviado por isabel Sprenger Ribas em 05/04/2017
Reeditado em 08/07/2017
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