991-GUARDANDO PARA O FUTURO

Já tinha sido um homem razoável, até cordato. Mas foi endurecendo o coração e perdendo a afabilidade à medida que o patrimônio cresceu e aumentou seu poder sobre as poucas pessoas que o rodeavam. Assim, encontramos Jovino Maragato beirando os cinqüenta anos, dono de quase trezentos alqueires de terra com mais de mil cabeças de gado de engorda. O temperamento evoluíra para uma dureza de coração, crueldade para com todos os seres vivos, implacável com a mulher e temido em toda a região do Alto Massapé.

A conquista do patrimônio fora feita através de compras (poucas e forçadas), expulsão de pequenos proprietários sem títulos nem força para enfrentar o poderoso e perigoso vizinho, mudança de cercas limítrofes, enfim, de todo e qualquer expediente escuso que pudesse acrescentar mais alguns alqueires à sua fazenda, herdada do sogro Coronel Cipriano.

Diziam que tinha partes com o demônio, o que ele não confirmava nem desmentia.

— Se o Capeta quer me ajudar, que me ajude. Não peço, mas não recuso nenhuma ajuda. — Usava falar alto, à guisa de resposta aos boatos que chegavam aos seus ouvidos.

Sua atividade era a criação de gado.

— Gado de engorda dá menos trabalho. Não preciso mais do que meia dúzia de vaqueiros para cuidar da boiada. Mas só aceito peão que for homem de verdade, pau pra toda obra.

Quando contratava um novo peão, fazia questão de que o empregado preenchesse esta última condição. O que significava que deveria ser um pau mandado, tanto poderia estar nas pastarias, cuidando do gado, como ser mandado para trocar moirões e arames, mudando limites e cercando caminhos. Dizem até que alguns se prestaram a eliminar os desafetos do patrão, mas isto ficou só no boato. Nunca ninguém conseguiu arrastar o poderoso fazendeiro a um tribunal, sequer denunciá-lo por algum crime ou posse duvidosa.

Casado com Sinfrônia, a mais humilde de quantas mulheres o homem já tivera em suas mãos, pois era dado a freqüentar bordéis e cantar mulheres alheias. Nhá Sinfrô, alguns anos mais velha que o marido, era duma simplicidade que atingia às raias da boçalidade. Não saía da fazenda, não tinha serviçais em casa, vivia cuidando das coisas do marido. Nunca perguntava por nada nem sabia dos negócios de Jovino. Um desinteresse total por tudo e por todos.

Jovino não media palavras, ou melhor, de sua boca só vinham palavrões. E não dizia quatro palavras sem colocar o nome do demônio no meio. Usava de mais de cinqüenta denominações para invocar o rei dos infernos.

— Cambada dos diabos! — Falava de seus peões. — Só sabem ficar mangando pelos campos.

— Que diabo de mulher! Vê se me apronta a comida, tou com uma fome do capeta.

Era um miserável no que dizia à vida pessoal ou à esposa. Para se vestir, a coitada era brindada, de vez em quando, com um corte de tecido ordinário, de cor escura, trazido pelo marido da loja mais barateira da cidade. Ela mesmo fazia seus vestidos compridos, que usava até ficarem puídos ou rasgados. Calçava apenas sandálias rústicas ou chinelas mal acabadas. Não se lembrava quando teve seu último par de sapatos.

Jovino Maragato guardava ciosamente o produto de suas vendas de gado para frigoríficos e matadouros da região. Não acreditava em bancos. O dinheiro ia todo para um baú mantido sob a cama de casal.

— Isto é para o futuro. — Dizia sempre que ajuntava novos maços de notas aos já empilhados no baú.

É claro que movimentava seu capital, pois todos os anos, aplicava parte do dinheiro na compra de novilhos para povoar os pastos, substituindo o gado erado, vendido a bom preço, pois era competente na atividade.

O dinheiro do baú sempre aumentava.

— Fica para o futuro.

Que futuro seria esse, nem ele mesmo sabia. Não tinha filhos, nem sonhos, nada. Vivia para aumentar a quantidade de terras e o número de rêzes do seu rebanho.

— Vou guardar pro futuro.

Nhá Sinfrô ouvia aquilo sem demonstrar o menor interesse. Mas sempre ouvia o marido guardando mais dinheiro no baú e confirmando:

— Guardo isto para o futuro.

Certa tarde, chegando da cidade, onde tinha passado alguns dias (e noites) na zona boêmia, sentiu alguma coisa estranha no ar.

— Sinfrô, que diabo de fedor é esse dentro de casa? Tá fedendo a enxofre. Parece a casa do capeta.

A mulher, esfregando as mãos no avental, cabeça baixa, explica:

— Sei não, Jove. Tá assim desde que o homem de preto veio buscar o baú. Conforme seu mandado.

— Que diacho de mandado é esse? Num mandei diabo nenhum buscar o baú.

Como que acordando para as palavras da mulher, grita para a coitada, encostada no corrimão da varanda.

— O baú! Cê falou que alguém veio buscar o baú do dinheiro?

Sem esperar resposta, corre para o quarto. Agacha-se de quatro ao lado da cama, estende o braço, procurando com a mão o baú. Nada encontra. Volta para a varanda. A mulher ainda está lá, agora apavorada ao ver a agitação do marido.

— Onde tá o baú do dinheiro? Fala, sua desgraçada do inferno.

— Pois já falei. Chegou um homem todo vestido de preto, num alazão também pretão,e falou, sem apear: “Vim buscar o que seu marido guardou pra mim”. Eu respondi que num sabia de nada. Ele me falou: Seu marido tem um baú que ele guarda dinheiro pro futuro. Meu nome é Futuro e vim buscar o baú. Intão eu me lembrei que ocê fala sempre que o dinheiro é pro futuro, e aí entreguei o baú pro homem de preto.

— Excomungada dos infernos! Vai acreditando assim em tudo o que ouve. E como era esse homem?

— Tudo de preto. Os olhos pareciam duas brasa acesa, de tão vermelho. Tinha um chapelão, também preto. Tava num cavalo enorme, que resfolegava. Um cheiro forte que até me fez espirrar. Quando dei pra ele o baú, ele deu uma risada, esporeou o cavalo e sumiu de repente.

— É o capeta! Cê deu meu baú de dinheiro pro demo!

— Eu num sabia. Ele falou que se chamava Futuro, aí eu pensei...

Desvairado, agarra a mulher pelo braço, sacudindo-a com força.

— Sua desgraçada! Num tinha nada que pensar! — Aliviando suas manoplas dos braços da mulher, aplica-lhe com a mão direita um tremendo tapa na face. Ela escorrega , resvala pelo corrimão e cai, rolando pela íngreme escadaria. Ao bater com a cabeça na quina do primeiro degrau, ouve-se um barulho de algo que se quebra.

— Filha de satanás! — Louco, ele grita do alto da escada.

Uma lufada com cheiro forte de enxofre passa por Jovino, que ouve, vindo do fundo do casarão, ecoando sinistramente em sua cabeça, uma gargalhada satânica.

ANTÔNIO GOBBO = BHTE, 17 / OUTUBRO/2006

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/03/2017
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