Noite mal dormida
A meia tarde já havia ficado para atrás, assim como um bom trecho de estrada, quando o mascate Chicantão notou que um dos dois cavalos cargueiros mancava. E mancava feio. Ele saíra do Capão do Cipó após a sesteada, com a intenção de vadear o Inhacapetum ainda à luz do dia e fazer pousada no Rincão dos Quevedos, onde era conhecido e afreguesado. Resolveu apear para verificar o que havia com o animal. Ao examinar a pata, que o cavalo mantinha meio suspensa e tremendo, ele lembrou-se que ao atravessar, uma hora atrás, o Passo do Rosário, este mesmo animal dera uma tastavilhada quase afocinhando na água, para depois sair manquitolando. “É pedra no mole do casco – calculou – se for, tô lascado” E de fato era.
Francisco Dorneles de Antão, conhecido na freguesia como Chicantão, mascateava por todo aquele rincão-de-meu-deus, que ia da costa do Jaguari Grande, à margem direita, rumo a Santiago do Boqueirão até o Espinilho, descambando depois para o Itu Mirim, onde dava de rédeas até o Toroquá, e daí a Iguaritama, onde era aquerenciado. E onde ele mantinha a última amigação, das muitas que arranjara. Neste rincão todo, era mais conhecido que as pedras.
E dali onde ele se encontrava agora, depois de arrancar com a ponta do facão uma lasca de pedra que ficara encravada entre a unha e o mole do casco do animal, calculou que não haveria mais tempo para chegar a Quevedos. Com um animal estropiado, deste jeito, daqui a pouco ele endurece a munheca e não anda mais. Pousar na estrada, com as bruacas carregadas de mercadorias, sozinho, e calculadamente com algum dinheiro na algibeira, é muito arriscado. Além do mais, agüentar o frio da madrugada ao relento não era de seu feitio. Logo ali adiante, no primeiro desdobrar da coxilha, havia um morador antigo, o Jesuíno Pouca Terra. Mas pedir-lhe pousada, só em último caso mesmo.
Pouca Terra era um fazendeiro de má fama, cheio de malquerença na vizinhança. Contavam os mais antigos que, há muitos anos, depois de uma querela judicial acirrada – em que houve até mortes entre os herdeiros do falecido – numa disputa em que ele havia entrado alegando filiação natural, tivera, como ganho de causa, o direito de ficar com a sede da fazenda e um pouco de terras. Enquanto que os herdeiros ligítimos ficavam com o grosso da sesmaria dividida em seis partes iguais. Por isso a má fama vinha de longe. Pensando naquelas histórias, bem ou mal contadas, só depois de notar que o animal não tinha mais condições de seguir viagem, é que Chicantão resolveu pedir pousada. Animou-se e foi.
O casarão metia medo. Em meio de um arvoredo sem poda. Paredes de cores indefinidas, um pouco de verde-musgo aqui, outro pouco cinza ou com o reboco caído mostrando tijolos nus acolá e a parede do oitão recoberta com heras trepadeiras. Janelões sem vidraça, duas água-furtadas parecendo dois olhos no cocuruto da casa e na frente só uma porta de entrada.
Não foi preciso dar “ô... de casa!”, pois dois enormes cães baios saíram ao encontro do recém chegado, rosnando ameaçadores, dando voltas e arrepiando os pelos. Não demorou muito, surgiu de um oitão da casa um negro velho, calvo, barbicha grisalha, meio encurvado, apoiado num bastão:
– Que que tu "qué"? – perguntou, sem ao menos um boa tarde.
– Venho com um dos meus animais estropiado e queria saber se consigo pousada e descanso pros cavalos – pediu o mascate, já um tanto injuriado com aquela recepção.
O caseiro deu as costas e saiu pelo mesmo caminho, capengando, sem nada falar. Enquanto isto, Chicantão, montado como estava, ficou a observar aquela moradia que ele tanta vezes vira de longe ao passar na estrada, mas nunca se animara a visitar. Nem para oferecer, vez por outra, alguma mercadoria. Não que houvesse alguma pendenga com o morador, mas por causa de sua má fama. Ao lado havia um galpão, aberto em sua metade, que servia de abrigo a aranha, único meio de transporte visível, e um pouco mais atrás, num vão do arvoredo, uma mangueira de ripões, caindo aos pedaços e um brete nas mesmas condições. O arvoredo era vetusto, nodoso e retorcido, indicando que algumas árvores poderiam ser do século passado. “Deus do Céu, onde é que estou metido?” – pensava. Mas ao mesmo tempo conformava-se: – Fazer o quê? Pousar na estrada seria pior.
Nisto reapareceu o barbicha rala, indagando:
– O patrão manda “preguntá” seu nome e, de onde vem, para onde vai e o que “faiz” e o que quer.
Fornecidas as informações, o negro retornou do mesmo jeito, deixando o recém chegado sob a vigilância dos cães, que dali não se arredavam, apenas se haviam deitado sobre os respectivos peitos, um ao lado do outro, em posição de ataque, como dois guardiões das portas do inferno.
Mais alguns minutos e o sol já se punha, quando o peão caseiro retornou, sinalizando que o patrão mandara dizer que se fosse o mascate Chicantão, então era de bom agrado e que podia encostar os animais no galpão para descarregar as tralhas e que podia soltar os cavalos no piquete, pois lá havia aguada e pasto bom. E “adespois” era para ele passar lá pra dentro onde as criadas serviriam o “de cumê.”
Achou tudo muito estranho, pois embora o negro velho o tivesse conduzido até um cômodo espaçoso, onde havia uma mesa grande cercada de cadeiras, ele fora deixado ali sozinho, sob uma luz mortiça de um lampião a querosene pendurado no teto. Ainda apalpando de vez enquanto na algibeira, sob a jaqueta, procurando colocá-la de jeito que não aparecesse, esperando que seu Jesuino Pouca Terra, o dono da casa, viesse, para, pelo menos, acompanhá-lo na janta, quem apareceu foi uma mulher de meia idade, retaca, com feições indiáticas, mestiça de cabelos trançados, que, depois de colocar em sua frente uma travessa com ensopado de espinhaço de ovelha com mandioca, prato, talheres e uma caneca dágua, retirou-se em silêncio.
Comeu à farta, de devagar, fazendo tempo, em silêncio, mas atento a ruídos, esperando que o patrão aparecesse de repente, ou que mandasse algum recado pelo velho barbicha, pois só esperava o aviso para ir dormir no galpão. Pelo burburinho que vinha do fundo da casa, da cozinha, provavelmente, havia mais mulheres na casa, mas do patrão, nem a sombra. Porém quem surgiu das sombras foi o barbicha dizendo que o quarto estava pronto, quando quisesse se recolher... E entregou-lhe um castiçal com uma vela, já acesa.
No quarto, onde havia apenas uma cama, lastro de ferro, uma cômoda rústica e algumas tralhas penduradas nas paredes, ele notou que a porta não tinha tranca, nem ferrolho ou qualquer outro tipo de fechadura. Vindos lá de fora, ele ouvia o lúgubre piar das corujas e de outras aves noturnas, mesmo assim caiu na cama e ferrou no sono.
Sonhar, não sonhara, mas lá pelas tantas foi despertado com ruídos estranhos vindos de outras partes da casa. Panelas batendo, na cozinha. Apurou os ouvidos. Vozes abafadas. Passos apressados no corredor contíguo. Uma porta rangeu nas dobradiças. Não saberia dizer quanto tempo estivera dormindo, mas ainda estremunhado, calculou que era madrugada alta. Os cachorros ganiçavam. E lá fora um tropel de cavalo afastando-se em disparada. Foi um dos poucos momentos em sua atribulada existência que Chicantão sentiu medo. "Vá saber o que está acontecendo. - pensava - e eu aqui sozinho, como um estranho portando algum dinheiro. E se eles resolvem... bom... ninguém, além dos que estão aqui na casa, sabe que eu estou de pousada na fazenda de Jesuíno Pouca Terra. E... para quem matou um ou dois, conforme contam, matar mais um para tomar o dinheiro, é num vá!"
- Por precaução, com certo esforço conseguiu arrastar a cômoda e colocá-la contra a porta. “Prevenção, não é medo e preocupação nunca é demais” – pensou. Dali em diante não dormiu mais. Resolveu ficar alerta, sentindo as horas passarem com o espírito preparado. Lá fora, no arvoredo, os corujões de orelha piavam suas desavenças e seus rancores. O cavaleiro que saíra em disparada voltara, agora no trote, acompanhado por outra pessoa, também a cavalo. Pareceu-lhe ouvir um grito meio abafado de mulher. No restante do casarão vozes femininas misturavam-se aos ruídos do corre-corre interno. Mais gritos. Desta vez um grito longo e sofrido, abafado por uma voz máscula dando graças, quando, finalmente o mascate Chicantão, um homem de vida calejada de tanto estradejar, ouviu algo que encheu seu coração de alegria e sua alma de alivio: um vagido cristalino, repetido e choramingado de um recém nascido.
A meia tarde já havia ficado para atrás, assim como um bom trecho de estrada, quando o mascate Chicantão notou que um dos dois cavalos cargueiros mancava. E mancava feio. Ele saíra do Capão do Cipó após a sesteada, com a intenção de vadear o Inhacapetum ainda à luz do dia e fazer pousada no Rincão dos Quevedos, onde era conhecido e afreguesado. Resolveu apear para verificar o que havia com o animal. Ao examinar a pata, que o cavalo mantinha meio suspensa e tremendo, ele lembrou-se que ao atravessar, uma hora atrás, o Passo do Rosário, este mesmo animal dera uma tastavilhada quase afocinhando na água, para depois sair manquitolando. “É pedra no mole do casco – calculou – se for, tô lascado” E de fato era.
Francisco Dorneles de Antão, conhecido na freguesia como Chicantão, mascateava por todo aquele rincão-de-meu-deus, que ia da costa do Jaguari Grande, à margem direita, rumo a Santiago do Boqueirão até o Espinilho, descambando depois para o Itu Mirim, onde dava de rédeas até o Toroquá, e daí a Iguaritama, onde era aquerenciado. E onde ele mantinha a última amigação, das muitas que arranjara. Neste rincão todo, era mais conhecido que as pedras.
E dali onde ele se encontrava agora, depois de arrancar com a ponta do facão uma lasca de pedra que ficara encravada entre a unha e o mole do casco do animal, calculou que não haveria mais tempo para chegar a Quevedos. Com um animal estropiado, deste jeito, daqui a pouco ele endurece a munheca e não anda mais. Pousar na estrada, com as bruacas carregadas de mercadorias, sozinho, e calculadamente com algum dinheiro na algibeira, é muito arriscado. Além do mais, agüentar o frio da madrugada ao relento não era de seu feitio. Logo ali adiante, no primeiro desdobrar da coxilha, havia um morador antigo, o Jesuíno Pouca Terra. Mas pedir-lhe pousada, só em último caso mesmo.
Pouca Terra era um fazendeiro de má fama, cheio de malquerença na vizinhança. Contavam os mais antigos que, há muitos anos, depois de uma querela judicial acirrada – em que houve até mortes entre os herdeiros do falecido – numa disputa em que ele havia entrado alegando filiação natural, tivera, como ganho de causa, o direito de ficar com a sede da fazenda e um pouco de terras. Enquanto que os herdeiros ligítimos ficavam com o grosso da sesmaria dividida em seis partes iguais. Por isso a má fama vinha de longe. Pensando naquelas histórias, bem ou mal contadas, só depois de notar que o animal não tinha mais condições de seguir viagem, é que Chicantão resolveu pedir pousada. Animou-se e foi.
O casarão metia medo. Em meio de um arvoredo sem poda. Paredes de cores indefinidas, um pouco de verde-musgo aqui, outro pouco cinza ou com o reboco caído mostrando tijolos nus acolá e a parede do oitão recoberta com heras trepadeiras. Janelões sem vidraça, duas água-furtadas parecendo dois olhos no cocuruto da casa e na frente só uma porta de entrada.
Não foi preciso dar “ô... de casa!”, pois dois enormes cães baios saíram ao encontro do recém chegado, rosnando ameaçadores, dando voltas e arrepiando os pelos. Não demorou muito, surgiu de um oitão da casa um negro velho, calvo, barbicha grisalha, meio encurvado, apoiado num bastão:
– Que que tu "qué"? – perguntou, sem ao menos um boa tarde.
– Venho com um dos meus animais estropiado e queria saber se consigo pousada e descanso pros cavalos – pediu o mascate, já um tanto injuriado com aquela recepção.
O caseiro deu as costas e saiu pelo mesmo caminho, capengando, sem nada falar. Enquanto isto, Chicantão, montado como estava, ficou a observar aquela moradia que ele tanta vezes vira de longe ao passar na estrada, mas nunca se animara a visitar. Nem para oferecer, vez por outra, alguma mercadoria. Não que houvesse alguma pendenga com o morador, mas por causa de sua má fama. Ao lado havia um galpão, aberto em sua metade, que servia de abrigo a aranha, único meio de transporte visível, e um pouco mais atrás, num vão do arvoredo, uma mangueira de ripões, caindo aos pedaços e um brete nas mesmas condições. O arvoredo era vetusto, nodoso e retorcido, indicando que algumas árvores poderiam ser do século passado. “Deus do Céu, onde é que estou metido?” – pensava. Mas ao mesmo tempo conformava-se: – Fazer o quê? Pousar na estrada seria pior.
Nisto reapareceu o barbicha rala, indagando:
– O patrão manda “preguntá” seu nome e, de onde vem, para onde vai e o que “faiz” e o que quer.
Fornecidas as informações, o negro retornou do mesmo jeito, deixando o recém chegado sob a vigilância dos cães, que dali não se arredavam, apenas se haviam deitado sobre os respectivos peitos, um ao lado do outro, em posição de ataque, como dois guardiões das portas do inferno.
Mais alguns minutos e o sol já se punha, quando o peão caseiro retornou, sinalizando que o patrão mandara dizer que se fosse o mascate Chicantão, então era de bom agrado e que podia encostar os animais no galpão para descarregar as tralhas e que podia soltar os cavalos no piquete, pois lá havia aguada e pasto bom. E “adespois” era para ele passar lá pra dentro onde as criadas serviriam o “de cumê.”
Achou tudo muito estranho, pois embora o negro velho o tivesse conduzido até um cômodo espaçoso, onde havia uma mesa grande cercada de cadeiras, ele fora deixado ali sozinho, sob uma luz mortiça de um lampião a querosene pendurado no teto. Ainda apalpando de vez enquanto na algibeira, sob a jaqueta, procurando colocá-la de jeito que não aparecesse, esperando que seu Jesuino Pouca Terra, o dono da casa, viesse, para, pelo menos, acompanhá-lo na janta, quem apareceu foi uma mulher de meia idade, retaca, com feições indiáticas, mestiça de cabelos trançados, que, depois de colocar em sua frente uma travessa com ensopado de espinhaço de ovelha com mandioca, prato, talheres e uma caneca dágua, retirou-se em silêncio.
Comeu à farta, de devagar, fazendo tempo, em silêncio, mas atento a ruídos, esperando que o patrão aparecesse de repente, ou que mandasse algum recado pelo velho barbicha, pois só esperava o aviso para ir dormir no galpão. Pelo burburinho que vinha do fundo da casa, da cozinha, provavelmente, havia mais mulheres na casa, mas do patrão, nem a sombra. Porém quem surgiu das sombras foi o barbicha dizendo que o quarto estava pronto, quando quisesse se recolher... E entregou-lhe um castiçal com uma vela, já acesa.
No quarto, onde havia apenas uma cama, lastro de ferro, uma cômoda rústica e algumas tralhas penduradas nas paredes, ele notou que a porta não tinha tranca, nem ferrolho ou qualquer outro tipo de fechadura. Vindos lá de fora, ele ouvia o lúgubre piar das corujas e de outras aves noturnas, mesmo assim caiu na cama e ferrou no sono.
Sonhar, não sonhara, mas lá pelas tantas foi despertado com ruídos estranhos vindos de outras partes da casa. Panelas batendo, na cozinha. Apurou os ouvidos. Vozes abafadas. Passos apressados no corredor contíguo. Uma porta rangeu nas dobradiças. Não saberia dizer quanto tempo estivera dormindo, mas ainda estremunhado, calculou que era madrugada alta. Os cachorros ganiçavam. E lá fora um tropel de cavalo afastando-se em disparada. Foi um dos poucos momentos em sua atribulada existência que Chicantão sentiu medo. "Vá saber o que está acontecendo. - pensava - e eu aqui sozinho, como um estranho portando algum dinheiro. E se eles resolvem... bom... ninguém, além dos que estão aqui na casa, sabe que eu estou de pousada na fazenda de Jesuíno Pouca Terra. E... para quem matou um ou dois, conforme contam, matar mais um para tomar o dinheiro, é num vá!"
- Por precaução, com certo esforço conseguiu arrastar a cômoda e colocá-la contra a porta. “Prevenção, não é medo e preocupação nunca é demais” – pensou. Dali em diante não dormiu mais. Resolveu ficar alerta, sentindo as horas passarem com o espírito preparado. Lá fora, no arvoredo, os corujões de orelha piavam suas desavenças e seus rancores. O cavaleiro que saíra em disparada voltara, agora no trote, acompanhado por outra pessoa, também a cavalo. Pareceu-lhe ouvir um grito meio abafado de mulher. No restante do casarão vozes femininas misturavam-se aos ruídos do corre-corre interno. Mais gritos. Desta vez um grito longo e sofrido, abafado por uma voz máscula dando graças, quando, finalmente o mascate Chicantão, um homem de vida calejada de tanto estradejar, ouviu algo que encheu seu coração de alegria e sua alma de alivio: um vagido cristalino, repetido e choramingado de um recém nascido.