O SEGREDO DE GERUSA*
Quando sentiu o líquido quente escorrer pelas pernas, viu que era sangue, empalideceu, buscou pela mãe, iletrada mas vivida, que a esclareceu, em seu modo tosco, e tal como acreditava. Gerusa tomou conhecimento de que já era uma fêmea com possibilidades de engravidar, os receios nas advertências maternas a deixaram incomodada. Atrás de cada palavra nenhum alento, apenas precauções externadas trazendo junto os traumas vividos pela genitora, assim foram recebidos os conselhos. Inútil florear de que deixava a infância e ingressara na puberdade, as etapas da vida, naquelas condições, não se davam de maneira suave, a hostil vida se apresentava aos solavancos, sendo vivida sem maiores considerações. Assim a assustada menina conhecia-se mulher. Sua beleza brejeira, maltratada mas insinuante, despontava. Era a única filha, tinha dois irmãos maiores, que junto aos pais lavravam a terra, cultivada em regime de parceria com o proprietário; aquilo garantia o sustento familiar, podendo ter algumas criações, como aves e porcos, além de pequena horta. A ela cabia os serviços domésticos, cozinhar e levar a comida aos familiares na roça, inclusive para a própria mãe que ajudava no cultivo. Também era sua incumbência encher a tina de água para as necessidades de higiene e lavar as roupas na beira do rio, o que fazia alguns dias na semana, sempre solitária.
A flor que surgia entre as pedras da vida humilde não passou despercebida pelo dono das terras, a avistá-la de seu cavalo, espreitando-a em seus afazeres, sendo que ela não notava malícias naquele proceder, as terras eram dele, normal, portanto, que cavalgasse por elas, acompanhando os serviços dos lavradores parceiros. Foi entretida na lavagem de roupas, agachada na beira do rio, ouvindo o canto dos pássaros, abordada pelo homem, rente a ela, de supetão e sem condições de reagir à investida. Pressionada contra o peito másculo, quase sem forças para reagir, sentiu as intenções dele, quase a sufocando. O asco de ver-se beijada à força, sem saber esboçar reação, sequer articular palavras ou gritar para fazer-se ouvida. Abatida como uma presa indefesa pelo predador, tendo o corpanzil do agressor devastando sua intimidade, burilando seus mamilos imberbes com sua boca ávida de gozos, depositada e arrastada sobre a relva mais oculta, sentiu-se penetrada e devastada em sua inocência. Em movimentos rápidos, deitada ainda na grama, viu ele levantar-se, afivelando as calças, saindo como se nada tivesse acontecido...
Momentos de pavor e impotência a assomaram, pálida e vacilante, tentando concatenar os pensamentos, dar-se cônscia da situação e de si mesma, buscando vestir-se com as roupas espalhadas, peças íntimas maculadas por sangue coagulado, a serem lavadas e ocultas dos olhos maternos. As lágrimas inundaram seu rosto, soluçando, desprotegida diante a agressão que jamais poderia imaginar. Doía as partes íntimas de seu corpo, parecia sentir ainda o incômodo daqueles momentos a martirizá-la, não conseguindo retirar dos pensamentos as cenas degradantes a que fora exposta... Um misto de indignação e a repentina ideia de correr aos seus e delatar a agressão sofrida. E a mente oscilando entre a razão e a raiva, reclamando vindita. Falaria à família, o que poderiam fazer em sua defesa? Cobrar satisfações, no caso grave da honra ultrajada, a questão poderia ser de violência, gerando tragédias. Seu pai e irmãos estariam enredados em uma vingança, sujeitos a sofrerem as consequências de um tirano poderoso; havia, ainda, a expulsão de todos da propriedade daquele monstro, ficando ao desamparo. Aquela pobre menina-moça-mulher via-se diante de um dilema dilacerante, a tirar-lhe o sossego e a placidez da existência, que apesar de pobre era mansa e tranquila. Com imenso esforço procurou agir com naturalidade, não passando desconfianças aos seus, apenas ficou mais calada, alheia em seus tormentos íntimos, passando despercebida pelos demais. Aturdidos todos em suas funções, não deram pelo seu comportamento quieto e arredio, traumatizada em seus solilóquios a martelar as cenas de que fora vítima.
O ocorrido verificou-se em várias outras vezes, já não encontrando resistências, subjugava-se passível e resignada às volúpias do patrão. Conformava-se consigo mesma de que não adiantaria reagir, melhor que se consumasse seus intentos. Parecia que a dominava como parte de sua propriedade, em nada importando-se como ela se sentia.
Certa feita, voltando para casa com a lata d’água na cabeça, sentiu-se estranha, parecia girar sem controle, teve vertigens, a obrigando descansar. Em seguida vieram os enjoos, com insuportáveis ânsias de vômitos. Sem saber o que acontecia consigo, com a respiração ofegante, espalhou água pelo rosto e a nuca, buscando algum alívio aos incômodos. Aquilo chamou a atenção de uma roceira próxima, que se aproximou, tirando-a de suas interrogações sem respostas. – Menina, se fosse casada diria que são sinais de neném a caminho... Aquilo veio-lhe como uma bordoada, tentando conter-se para não desmoronar ali mesmo, disfarçando nas reações....É a carne de porco, neste calor, não me fez bem...logo passa ! Passados alguns momentos, refeita, prosseguiu a caminhada para sua casa. A assaltava o desespero diante a possibilidade de estar grávida.
Na outra tarde, agachada no seu mister de lavadeira, pressentiu a presença do homem que vinha satisfazer-se a usando; desta vez, contudo, reuniu forças e retrucou, quase em um pedido de compaixão: Por favor, acho que estou prenha, não sei o que vai ser de mim... Diferente das atitudes bruscas anteriores, sempre calado, não teve as mesmas reações, parou para ouvi-la, dizendo compassivamente: Eu cuido disso, me aguarde, não comente com ninguém. E pela primeira vez, desde de suas infelizes investidas, não abusou dela, retirando-se.
No domingo, com a família reunida em casa, pretextando cuidar das galinhas e dos porcos, manteve-se no quintal, onde ocultava os constantes enjoos que iam e vinham. Já havia feito um chá com ervas para o estômago, o boldo, amenizava mas não resolvia o problema. Tinha as têmporas com suor frio, rusga de preocupações com seu destino caso os familiares tomassem conhecimento. Entretinha-se em seus pensamentos e foi necessário que gritassem alto para trazê-la de volta a si mesma. Anunciavam que tinham visitas e que queriam vê-la. Para mim, quem poderia ser? Pensou com ar de aborrecida, temendo trair-se com os sintomas evidentes da gravidez, foi para dentro de casa. Da cozinha ouvia as vozes na sala, não conseguindo identificar de quem fosse. Como diziam que queriam vê-la, entrou no recinto, assustando-se com a surpresa.
O Pai, servil, tomou a frente: filha este é o “seu” Honório, o proprietário destas terras, e a sua esposa, dona Lúcia, eles vieram para nos pedir que você vá para ajudá-la em casa, pois a senhora está grávida e precisa de alguém nos serviços... Antes que pudesse se recuperar do susto, o genitor praticamente respondeu por ela... Temos muito gosto que você possa ajudá-los, talvez até continuar com seus estudos. Pálida, procurando se conter do susto, estendeu a mão em cumprimentos ao casal, evitando fitar de frente seu agressor que parecia um bem comportado cavalheiro naquela encenação. Diante aos fatos ela não tinha escolha senão seguir com eles. A despedida mais sentida foi com a mãe, juntas no quarto arrumando as suas poucas roupas percebeu que aquela matuta forte tinha sentimentos que não conseguiu disfarçar em um apertado abraço e as lágrimas dela brotaram como água represada, seriam presságios de mãe? Ficaram de ser ver quando fosse possível, e seguiu o casal, cabisbaixa. Sua sorte entregue nas mãos daquele homem que a desonrou e de quem germinava em seu ventre sua semente.
Poucas palavras trocadas durante a viagem de charrete, o casal seguia no banco da frente e ela, atrás, os observava dando asas às suas dúvidas. Teria aquela ainda jovem esposa conhecimento das libertinagens do marido? Pareciam felizes, rindo e conversando como um casal bem consorciado, ou tudo seria, apenas, encenações para ela ? Não acreditava, pois não se sentia com importância para tanto, parece, até, que desconheciam sua presença naquele assento traseiro.
A casa grande tinha cinco quartos com banheiros, arejados, cercada por uma varanda bem posicionada de amplas vistas, os móveis de bom gosto e sem exageros, privilegiando mais espaços do que acessórios decorativos. A ela foi indicado um dos aposentos, estranhou pela deferência, ao não lhe designarem uma acomodação de empregada, como seria o esperado. Seus poucos pertences tomavam apenas parte do guarda-roupas e da cômoda a ornarem a dependência, também composta por uma cama de solteiro, um criado mudo anexo com um abajur simpático. Aquilo parecia o máximo para quem sempre teve apenas o essencial. As surpresas não terminavam, havia empregadas na casa, então por que contratá-la? Também não lhe foram dadas as recomendações e as funções que desempenharia, talvez esclarecidas no decorrer da gestação da patroa, lembrando-se ela de que também estava gestante, aquilo a incomodou, será que era do conhecimento da senhora seu estado de grávida? Por certo ignorava de que o pai era seu próprio marido, o que teria ele alegado para a esposa ao contratar uma gestante? Em breve estaria proeminente seu ventre, suas atividades iriam requerer mais cuidados ; ele sabia que seria pai, e dele foi a iniciativa de levá-la para sua casa. Eram tantas as dúvidas a assaltá-la que deixaria as coisas acontecerem para ter suas respostas. A indefinição do que faria na casa a encabulava, parecia uma hóspede tratada com inusitada delicadeza. Recusou-se, delicadamente, a fazer as refeições na copa, junto dos patrões. Sentia-se mais a vontade na cozinha, junto às empregadas. Não insistiram, por certo consideraram sua timidez e poucos modos nos tratos com os talheres e cardápios mais sofisticados. Quis ajudar na cozinha, precisava desempenhar alguma função, senão acabava louca em suas interrogações sem respostas, nisso não permitiram. Ai foi que deu-se conta de que a patroa sabia que ela estava gestante, ficou evidente na admoestação para que não fizesse nada que exigisse esforços, dado ao seu “estado”. Mistério que a intrigava, ainda mais com a chegada de um homem gorducho de valise e estetoscópio no pescoço, era o médico, possivelmente para consultar a patroa. Mas não, ela fora chamada perante ao doutor rechonchudo. Homem simpático e alegre, fez-lhe algumas perguntas, consultou seus pulmões, prescreveu algumas vitaminas, e confirmou sua gravidez já perto dos quatro meses. Dona Lúcia assistiu a tudo, estranhamente maravilhada com a confirmação, recebeu o receituário e ordenou que fosse aviado na farmácia. A partir dali Gerusa passou a ser tratada com especiais cuidados, como se fosse uma rica porcelana que poderia se quebrar. O casal se esmerava em cuidar de sua saúde e bem estar, poupando-a de maiores esforços, o que a entediava a passar as horas sem nada por fazer. Era dinâmica, sempre tivera sua rotina, agora parecia estar proibida de exercer qualquer atividade. Passava a ficar claro de que a patroa sabia que a criança gerada era do próprio marido, do contrário por que tanto desvelo com ela, praticamente uma estranha ? E, se ela estava grávida, por que seria tão tolerante com uma relação extra - conjugal do esposo? Procurou especular com as colegas de trabalho, discretas ao extremo. Mas se mostraram surpresas ao ouvir dela que a patroa estava gestante. Chegaram a alegrar-se com a notícia, pois deixaram escapar que a mesma, desde a última frustrada gestação, não poderia mais engravidar. As coisas começavam a fazer sentido, Gerusa passou a considerar que fora engravidada para dar ao casal uma criança, não importando a eles seus sentimentos, era apenas um meio de conseguirem seu intento. Então todos os cuidados a ela dispensados faziam sentido. O patrão agiu tendo certeza de que ela se calaria aos seus, por medo de enfrentá-lo, então seu plano sórdido estava desvendado. Mais uma vez teria que suportar aquela injustiça, serviria como uma barriga de aluguel, hospedando um ente do qual não poderia sequer amá-lo como seu. Para a família pediam que escrevesse, periodicamente, uma carta, sabiam que ela omitiria sua gravidez, não desejariam que alguém aparecesse para vê-la gestante, assim a distância ficava mais tolerável para eles. Sempre havia a promessa de que voltaria, assim que o filho da patroa nascesse.
O patrão, depois da notícia da gravidez, não mais a procurou, aliás, evitava ficar a sós com ela, possivelmente para não ser interpelado; quanto a Lúcia, pelo contrário, vivia próxima, dispensando atenção, não raro permitindo-se alisar o ventre já crescidinho com inexcedível carinho. Parecia que a grávida, efetivamente, fosse ela, a tal ponto de chamar o bebe de “nosso filho”. Curiosamente, o berço foi escolhido pelo casal sem a presença e mesmo a opinião da parturiente, que só tomou ciência quando da entrega do móvel, instalado no quarto do casal. Assim como o caprichado enxoval do bebê, escolhido à revelia da verdadeira mãe. Claro então o zelo para com ela, não exatamente consigo, mas com quem trazia em suas entranhas. Abismada e arisca, já previa o final daquela história, a teriam enquanto não nascesse a criança, depois... Ora, para a sua família ela voltaria após ajudar a patroa em sua gestação, tudo dentro da lógica. Quanto a ela, desembaraçada da barriga, voltaria ao anonimato de camponesa. Continuaria a manter o segredo, sem outra opção. Usariam a sua maternidade para suprir a deficiência da patroa; parecia inexistir como pessoa, sequer a consultaram e pareciam indiferentes a essa questão. Era como um objeto, sem sentimentos, vontade e voz. Lembrava antes uma procriadora, uma vaca leiteira, inoculada pelo sêmen patronal. Nem parceria era, pois ela não teria parte alguma.
Após o nascimento do menino, saudável, de parto normal, a mãe funcionou como ama de leite até o desmame, o fruto de sua gestação trouxera paz e alegrias àquele casal, missão cumprida. Ficava com o pequeno no colo apenas naqueles imprescindíveis momentos da amamentação, observada atentamente pela mãe usurpadora, como enciumada daquelas tetas fartas e providas do nutritivo leite. Não a destratavam, se fosse seria alguma coisa, uma reação, menos que isso, sentia a indiferença, como se ela estivesse cumprindo uma simples obrigação devida.
A mesma charrete que a trouxera meses atrás a devolvia ao convívio dos seus, sem qualquer suspeita. Aquele interregno em sua vida seria sempre um lapso de tempo do qual deveria esquecer, mesmo que seu amor materno a sufocasse em lágrimas de saudades de seu filhinho que jamais a conheceria...
*Selecionado para publicação em livro na antologia E agora, Bob ? Editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ, abril de 2017.