Gravidez improvável

Era a última noite do ano. O mundo todo estava em festa, não havia como negar. Nessa data é tão comum esquecermos os maus bocados do ano todo, as rusgas, tristezas, desilusões e festejar o começo de um novo ano, que na verdade não muda em nada se não mudarmos. Como eu disse, é comum esquecer. Só não disse que eu não esqueço. É complicado. Não vejo graça nessas ocasiões, e, não fosse pelo fato de eu me sentir na obrigação de me embriagar, já que nos demais dias do ano, sem motivo aparente, eu já faça isso, sinceramente, a data passaria em branco. Já era próximo de onze da noite, e eu já estava na terceira dose. Uns amigos resolveram aparecer para tomar umas também.

Noites de fim de ano sempre tem locais abarrotados de gente. E gente de todo tipo. Fomos a uma boate que só faltava transbordar gente pelas janelas, de tão lotada. Pegamos umas bebidas, e como de costume, fomos para a área de fumantes. Acho qua já manifestei minha opinião sobre esses "fumódromos", mas há algo que eu ainda não disse sobre. É uma parte da festa bastante peculiar, devido a grande nuvem de fumaça que ocupa o local, mas, para quem fuma, pouca diferença faz. Tirando esse detalhe, dá pra conhecer muita gente bacana nas áreas de fumantes. As vezes nem tão bacana. Uma das garotas me abordou.

- Nossa, que lindo esse seu cordão...- disse estendendo a mão para tocar o pingente do cordão pendurado em meu pescoço.

- Por favor, não toque - respondi, colocando para dentro da camisa.

- Nossa! É de ouro? Porque não posso tocar?

- Eu prefiro que não toque. Não deixo ninguém tocar. Foi a última lembrança que minha ex-mulher me deixou.

- Me desculpa, não sabia. Ela te deixou faz tempo?

- Três anos.

- Que triste. Porque separaram?

- Ela morreu - eu disse, tragando longamente meu cigarro - Leucemia.

- Nossa, nem sei o que dizer...

- Não diga nada.

- Posso te abraçar?

- Claro.

Metade do caminho já estava traçado. Meus amigos riram da história. Realmente muito criativa e criada na hora, sem planos anteriores. Era mais fácil assim, do que contar toda a verdade sobre quem você é ou deixa de ser. As pessoas sempre desconfiam quando se é muito sincero. É mais cômodo, às vezes, criar essas histórias. Ainda mais quando não se tem perspectiva nenhuma de futuro ali. Passamos momentos bem agradáveis e em turma, e por fim fomos enxotados pelos seguranças da boate. Eram 8 da manhã, e a festa já tinha acabado.

Acredito que se passaram quase 10 meses, quando eu nos encontramos de novo. Seu nome era Carla. Apesar dos 26 anos, que tinha na época, era mais uma garota do que mulher. Rosto delicado, cabelos longos e pretos como a noite sem luar e um belo corpo esguio. Ficamos todo esse tempo sem nos falar. Correrias da vida, desencontros, etc. Eu tinha voltado de viagem, e assim que cheguei, fui surpreendido por sua ligação.

-Ei! Ainda se lembra de mim?

-Claro que lembro, tudo bem? A que devo a honra dessa ligação?

-Você é sempre bobo assim? - e explodiu em gargalhadas - Vamos nos encontrar? Bater papo e tomar umas geladas.

-Vamos sim! Hoje?

-Sim! Você me busca às 20?

-Claro! Até.

Realmente cairia bem um encontro desses voltando de viagem. Busquei-a por volta do horário combinado e fomos beber. Ela tinha mudado pouca coisa desde que tínhamos nos conhecido. Já eu tinha ganhado alguns bons quilos, e andava meio inchado de cachaça. Fomos para um bar bem tranquilo, no subúrbio mesmo, onde se pode tomar uma cerveja e conversar sem ser muito incomodado. Além disso era um dos poucos bares onde se podia fumar sentado. Hoje em dia é expressamente proibido fumar sentado nas mesas de bar. Se você fuma, tem de fumar da calçada pra rua. Absurdo, enfim.

-E depois desse tempo todo, você ainda tem meu telefone - eu disse rindo.

-Pois é, guardei bem. Gostei de te conhecer. A sua história de vida me comoveu muito.

-Olha, então...- comecei a ficar meio sem graça de ter que contar a verdade - aquela história toda é mentira...

-Como? - ela me interrompeu - Como você consegue mentir sobre essas coisas com naturalidade?

-Não sei. Saiu na hora.

Expliquei a ela toda a história. Ela aceitou bem, por fim estava rindo, tanto da arte de fazer ela acreditar na história, quanto da ingenuidade que ela carregava. Entre um cigarro e outro, ela me contou também sobre um tratamento que fazia. Eu fiquei totalmente assustado, cheguei até acreditar que ela estava tentando me dar um troco pela mentira, mas não era. Depois de uma meia dúzia de oito cervejas e drinks, resolvemos partir. Fomos pra um motel, e o resto da noite não carece de mais detalhes.

Quase dois meses depois, eu estava em casa, me recordo bem, era uma quinta, fim de noite já. Eu fumava meu último cigarro do dia, quando meu telefone tocou, de um número desconhecido.

-Alô, quem fala?

-O dono do telefone - eu respondi, rigidamente.

-Ai, me desculpa. Meu nome é Cristina, sou irmã da Carla. Ela disse que saiu com você tem uns dois meses...

-Ah, sim. Está tudo bem com ela?

-Mais ou menos, ela acredita que está grávida...

-Mas já se passaram quase dois meses, pode ter sido outro cara.

-Ela garante que foi com você.

-Mas é impossível. Ela estava no fim daqueles dias...

-Bom, eu não quero saber os detalhes, vou passar o telefone pra ela.

-Tá!

Pelos sete infernos, isso não podia estar acontecendo. Naquela noite nós usamos preservativos, e ela estava no fim do período menstrual, as chances eram mínimas. Eu comecei a tremer, não estava pronto pra isso. Comecei a ter devaneios de um futuro que eu não queria. Voltei a realidade com a voz dela me chamando no telefone.

-Olha, me desculpa. Eu estou desesperada.

-Tudo bem, fica calma. Você já fez o teste de gravidez de farmácia? - respondi.

-Já sim, mas dizem não ser muito confiáveis. Meu peito está inchado, já esta produzindo até leite.

-Mas é muito cedo pra isso! Me passa o nome dos remédios que você toma. Ah! e faz outro teste de farmácia.

-Tá bom, vou te mandar o nome dos remédios por mensagem.

-Ok. Mas fica calma, tá?

-Tá.

Desliguei com a frase "fica calma, tá" ecoando em minha cabeça. Como eu podia pedir isso a ela, se a sensação que eu tinha, era que meu mundo estava ruindo. Sim, eu sei que existem situações muito piores na vida, que muita gente passa por situações horríveis. Mas pra mim, a ideia de um filho, agora, estava fora de cogitação. Quando ela me mandou o nome dos remédios, eu já estava com o computador aberto, esperando para pesquisar sobre os efeitos colaterais. Confesso que foi uma longa procura, pois ela tomava cerca de 5 remédios, totalmente diferentes um do outro. Depois de uma hora de pesquisa, descobri que um dos remédios causava alterações num hormônio chamado prolactina, e poderia fazer com que mulheres que não estivessem grávidas, produzissem leite. Acendi um cigarro, fui ligar pra ela, pra contar a descoberta.

-Oi, sou eu.

-Eu to desesperada.

-Calma, li sobre um dos remédios que você toma. Ele pode afetar um hormônio que estimula a produção de leite materno.

-Sério? Não sabia.

-Dá uma olhada na bula. Eu vou tentar dormir, trabalho cedo amanhã.

-Tá. Obrigada. Boa noite.

-Boa noite.

Quando desliguei, percebi que não conseguiria dormir. Me vesti, peguei meu maço de cigarros e fui pra rua encher a cara. Na manhã seguinte, ainda sem dormir, liguei pra ela enquanto ia pro trabalho. Sua voz me pareceu mais calma, e ela disse que estava a caminho da farmácia para comprar outro teste. Eu já pensava em tudo que podia acontecer. Eu nunca fui desses caras que sonha em ter filhos. Digo, meu pai abandonou a mim e a minha mãe quando eu tinha uns 9 anos. Pra mim sempre foi injustificável a partida dele. E agora eu me via numa situação com uma mulher que eu mal conhecia, e estávamos prestes a colocar uma criança no mundo. E se eu acabasse agindo como meu pai? Acredito que eu não me perdoaria nunca. No fim da tarde, ela me ligou.

-Oi, fiz o teste.

-E ai, o que deu? - perguntei apreensivo.

-Deu negativo. Mas ainda não confio nesse resultado.

-Entendo... - respondi desanimado - só nos resta então o exame de sangue. Na segunda eu te levo pela manhã pra fazer a coleta...

-Você tá louco? - ela me interrompeu - Como eu vou sair pra fazer esse exame? Eu trabalho com a minha mãe, o que vou dizer pra ela?

-Olha, se você realmente estiver grávida, uma hora vai ter que contar! Ou você planeja esconder a barriga por nove meses? - respondi com a voz bem alterada.

-Não grita comigo! Eu estou mais desesperada que você! É a minha vida que vai acabar se eu realmente estiver grávida! - e explodiu em prantos.

-Calma, me desculpa - tentei acalmar a situação - vamos pensar em algo...

-Vá pro inferno! - ela disse e desligou na minha cara.

Me segurei pra não jogar o telefone na parede. Acendi outro cigarro, dei uma profunda tragada, e liguei de novo.

-Olha, me desculpa. Mas eu estou tão nervoso quanto você.

-Tudo bem - ela respondeu aparentemente mais calma - eu também estou. Mas vamos fazer o seguinte. Pelos meus cálculos, daqui a 5 dias deveria chegar minha menstruação. Vamos esperar, se chegar, a gente tem a confirmação, se não, a gente faz o exame de sangue, pode ser?

-Por mim faríamos o exame o mais rápido possível, mas vamos esperar então.

-Tá bom! Vamos nos falando.

-Tá.

Na verdade, dois desses cinco dias eu teria de esperar de qualquer forma, pois o fim de semana estava começando, e eu não sabia se conseguiria me manter vivo. Não precisava ser nenhum gênio ou vidente pra saber que naquele fim de semana eu beberia mais do que metade do mundo.

Nos cinco dias que passaram, minha rotina basicamente era intercalada por cigarros. Ao acordar, eu acendia um cigarro e fumava antes de ir pro banho. Depois de me vestir, acendia outro e ia pra mesa do café, e a caminho do trabalho, eu já estava no terceiro do dia. E assim ia ao longo de todo o dia, durante esses cinco intermináveis dias. Quando chegou o quinto dia, ela me ligou.

-Oi...

-Oi, tudo bem? Tem boas notícias? - perguntei aflito.

-Então... não, não tenho.

-Como assim?

-Não desceu. Ainda tô desesperada.

-Fica calma, a gente faz o exame de sangue pra ter certeza.

-Tá, mas amanha eu não posso.

-Pode ser na sexta?

-Pode.

-Tá, te busco as 6:30h. Em jejum, tá bom?

-Tá.

-Fica calma - nem sei porque eu disse isso - vai dar tudo certo.

Sexta seria dali a dois dias. Se eu conseguiria esperar, era outra história. Nessa altura da história, até suicídio já havia sido considerado como saída. Por mais covarde que seja, ainda assim era uma saída pra qual a coragem era mais do requisito, era uma condição. A ideia vinha, e junto com ela eu acendia um cigarro. Quando chegava ao fim, já nem pensava mais, e quando realmente acabava, eu voltava a pensar em tudo o que estava acontecendo. Mas agora seriam mais duas noite em claro, ou pelo menos até saber o resultado do exame.

Como era de imaginar, a véspera da manhã do exame, eu passara acordado e fumando. A janela da sala era meu apoio e minha companhia. Não me recordo de ter chorado, mas acredito que isso tenha acontecido algumas vezes. Depois de dias sem dormir, tão entorpecido de álcool e tabaco, fica difícil precisar as datas e acontecimentos. Tomei uma caneca bem cheia de café e fui buscá-la.

Ela estava me esperando no portão. Eu não a via desde a noite em que tínhamos nos encontrado. Seus olhos estavam fundos, acredito ser por conta do choro e desespero, e das noites sem dormir. Quando ela entrou no carro, acendi um cigarro pra mim e um pra ela. Seguimos o percurso todo sem falar nada. Apenas o som das notícias do rádio ecoava dentro do carro e da minha mente. Chegando no laboratório, ela tremia, e talvez eu tremesse também. Quando a enfermeira foi coletar o sangue, pedi que esperasse. Abracei-a e disse que ficasse calma, que tudo ia dar certo.

-O resultado sai na segunda-feira apenas - me disse a enfermeira - mas vou deixar minha senha de acesso do sistema com você. Hoje a tarde estará disponível depois das 15h.

-Olha, realmente não sei como agradecer. Muitíssimo obrigado.

As vezes conhecer alguém que conheça alguém ajuda, e muito. Minha mãe fez alguns exames nesse laboratório, e acabou fazendo amizade com essa enfermeira. Quando contei a situação a minha mãe, ela prontamente entrou em contato com a enfermeira, para nos ajudar nesse processo. Enfim, eram sete da manhã, e eu tinha agora "apenas" oito horas de espera. No caminho para deixá-la de volta em casa, pouco falamos também. Disse a ela que ligaria assim que soubesse da resposta.

Fui para o trabalho, e por sorte, havia um happy hour previsto para aquele dia, por volta das 12h. Bebi como se não houvesse amanhã. Eu precisava de um belo porre, mesmo que, naquela altura do campeonato, eu já estivesse bem resistente aos efeitos do álcool. Fui pra casa por volta das 14:30h. Cheguei, tomei uma boa ducha fria, fiz um café bem forte, e liguei o computador. Acendi um cigarro e fiquei esperando o resultado aparecer na rede. Às 14:57h o resultado estava no sistema. Eu tremia. Depois de tanta espera, estava com medo de abrir e ver no que dava. Terminei meu cigarro e abri o documento. Li, reli e não entendi nada. Resolvi ligar pra enfermeira do laboratório.

-Oi, tudo bem. Eu estive hoje cedo...

-Deu negativo! Pode ficar tranquilo - ela me interrompeu.

-Sério?

-Sim, eu fiquei apreensiva também pela história, e estava acompanhando no sistema aqui.

-Olha, mais uma vez, muito obrigado. Não sei como agradecer.

-Não precisa agradecer. Boa sorte.

Das dez mil toneladas que estavam nas minhas costas, agora só restava metade. Eu tinha vontade de gritar, de comemorar, de anunciar no rádio a notícia. Mas ainda precisava ligar pra Carla.

-Oi, sou eu.

-Estava aflita aqui já - ela me respondeu.

-Então...

-Diz logo!

-Deu negativo.

-Não acredito! Que ótimo!

-Nem me fala!

-Olha, muito obrigado por me acompanhar nisso tudo. Espero que saiba que eu não tive a intenção de...

-Não tem do que se desculpar - interrompi - fique em paz. Nos vemos por ai.

-Tchau.

-Tchau.

Eu me senti novo. Me sentia vivo de novo. A vida continuava, e eu tinha escapado dessa.

Márcio Filho
Enviado por Márcio Filho em 15/02/2017
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