Os Imperceptíveis Traços do Pincel
Um conto pode tratar-se de um pretexto para reatar Amizades ao som de Phillip Glass.
Eu dou corda. Ele se aproxima. Os seus passos graciosos no chão riscam uma sombra que se dissipa e desabrocha em si. Os seus olhos me horizonteam como uma ave de rapina. Estica a mão para que eu a tome e o acompanhe. O seu sorriso mediante o meu consentimento inclina-se sobre mim como um tecido de cetim.
Quem nunca dançou, que mova a primeira perna!
Que os meus movimentos em muito se assemelhavam ao de uma criança que cambaleia sobre as pedras escorregadias de um riacho, não se trata de novidade. Talvez se tratasse, por fim. Afinal de contas, aquele corpo que ali dançava, não se tratava do mesmo que há alguns minutos apenas acompanhava com os olhos. E esse acompanhar com os olhos não se trataria, também, de um envolvimento, de um passo de dança? As linhas que determinam a diferença entre o observador e o objeto observado embaralham-se continuamente, enquanto lançam-se os dados.
Me acode saber que nada sei acerca de dança. Agora me complico, pois, como posso saber que não sei? Sei que há algo a se saber, e sei bem que desse algo nada sei. Isso já não comportaria um saber?
Enquanto envolvia-me aquela sensação embriagante de sonho inacabável, corri ansiosa para onde ecoava a sua voz. Trocávamos os passos pelos telhados, enquanto em cascata caíam as estrelas sobre os nosso corpos nus, diluídas em cada gotícula de chuva. Não à toa eu escorregava - possuía uma certa dificuldade em alcançar tons mais altos.
Movimentava-se dentro de mim um oceano coberto de versos acalentadores entoados por vozes diversas que esbravejavam repentinamente, ampliando-se sobre as superfícies do meu sistema tegumentar. Compreendia, pois, como se sentia o piano ao ter as suas teclas pressionadas com força, delicadeza, e precisão nas mãos de um jovem Tuomas Holopainen.
Conforme aprofundava-se aquela devastante sensação de sonho inacabável, vertia-me em cores translúcidas que transbordavam onomatopeicamente no céu da boca. Devorava-se a figura dianisíaca ali deitada sobre si em algum tipo de samsara superada. Os seus olhos, flamejantes como najas, tinham os corpos percorridos por desejos de, não um mundo diferente, e sim, maneiras diferentes de se viver. Acordava. Um acorde derramado sobre os seios, e o abismo lhe abandonava.
“Os sonhos não pertencem à minha jurisdição”, dizia, enquanto se afastava lentamente, em consonância à música, que também perdia a sua força. Então é disso que se trata a força? Imaginei que um abraço se tratasse de um signo da realização de uma potência.
“E o que faço, ao sonhar contigo?”, perguntava, apanhada pela possível dissipação do sonho sobre um travesseiro babado. “Já faz - sonha!”, respondeu, esbanjando aquele sorriso prometéico, que nos traz o fogo que iluminará tudo aquilo que há dentro de nós - nada!
Chegou o dia seguinte, e chegaram os demais dias seguintes, untados com a esperança na possibilidade da possibilidade de me deparar com algum fio de crença de que a distorção de noites atrás alinharia-se a algum desfecho simplista e idiota. Talvez no canto de alguma gaveta, entre as traças que saboreiam as cartas escritas, diversas, que jamais entreguei, senão estraguei com preciosa debilidade. O desfecho simplista e idiota c’est moi.
“Este lado para cima”. A minha vontade era de jogar aquela caixa no chão. Como se eu lesse de cabeça para baixo! Mostra-se tão simplista e idiota quanto os avisos que se encontram no lado de dentro do elevador, quando deveriam estar do lado de fora. Estou impaciente. Queria apenas a unicidade de seu abraço.
Caramba, será que é tão difícil de compreender que tudo o que eu quero é voltar a compartilhar das nossas viajantes conversas, sem que precisemos voltar a ficar, a nos pegar? Parece que lançamos uma âncora de peso imensurável no ermo de um mar qualquer, condenando o nosso navio à devastação do tempo, fugindo em botes medíocres pela grandiosa porta dos fundos chamada de silêncio.
As minhas mãos tentam cavar cada vez mais fundo o meu peito, na intenção fútil e quase heróica de tentar arrancar esse órgão em formato de cone, relativamente pequeno, com um tamanho que se aproxima ao de um punho fechado, cerca de 12 cm de comprimento, 9 cm de largura, e 6 cm de espessura, com uma massa de, em média, 250 g. Arrancaria de mim a vida, acreditando arrancar de mim as tuas marcas. Que angústia!
Entenda-me, em todas as vezes que tentei aproximação, a vontade era de te estrangular com um abraço tão terno, afável, e nectáreo, afogando o teu rosto, com todos os seus contornos pelos quais eu deslizava os meus dedos em admiração, no meu pescoço, consumindo a tua vitalidade com a ofegação dançante em minha garganta.
Se todo mausoléu nada mais é do que o ápice da vaidade humana, e lembro de você dizer que aquelas pessoas que éramos estão mortas, e que o que temos é o luto do que se encerrou, me pergunto se o que temos neste momento, não passa de mero golfo da vaidade, da nossa vaidade.