954-IVÃ O TERRIVEL - Vovó Bia conta # 26
Histórias da Vovó Bia – 26º. Da série
Os garotos chegaram da escola com novidades. Mal esperaram terminar o jantar para contar.
— Hoje teve briga na saída da escola. — Disse Tavinho, entre uma garfada e outra, para todos da família, reunidos ä mesa.
— Menino, não fala com a boca cheia. Que falta de educação!
— Que aconteceu?
— Ivan brigou com o Ditão. Rolaram na areia.
Vovó Bia ficou curiosa e perguntou:
— Mas porque brigaram?
— A professora estava explicando a história de um imperador da Rússia que era muito mau, que tinha matado muita gente e que se chamava Ivã, o Terrível. Então o Ditão falou La do fundo da classe: “Foi o avô do Vanzinho”. Aí, o Ivã falou “’Foi sua avó”.
O Ditão é aquele que está sempre na diretoria? — perguntou Doralice.
É ele mesmo. É o maior da classe e fica provocando todos os colegas. Mas o Ivã é pequeno mas não leva desaforo prá casa. .
— E a professora? Que foi que ela fez?
— Colocou os dois de castigo, de pé atrás do quadro negro. Então o Ditão falou “Te pego lá fora”. — Explicou Toninho — E depois a professora não contou mais a história do tal de Ivã.
— E quando a gene saiu, os dois se agarraram e rolaram pelo chão. Sorte que a areia é macia. - disse Carlinhos,
— Foi preciso que o seu Geraldo porteiro separasse os dois.
— Mas porque eles brigaram? Só por causa do nome do Imperador da Rússia? — indagou Tia Elvira.
Vovó, que ouvia calada, disse:
— É, o seu coleguinha tem razão. Ser comparado com Ivã O Terrível, o primeiro imperador da Rússia, é um insulto dos grandes. Embora o próprio Ivanzinho, não saiba da história. .
Carlinhos começou a falar, dirigindo-se só para Vovó Bia:
— Primeiro imperador da Rússia? — Faz muito tempo, vovó?
— Há mais de quinhentos anos. – respondeu a culta e afável senhora.
— Conta essa história prá nós, conta!
Vovó Bia ia responder, mas tia Elvira falou primeiro:
— Carlinhos, para de conversa e tome logo a sopa.
Vovó Bia disse:
— Sim, vamos terminar nosso jantar. Depois da refeição, eu conto a história de Ivã, o Terrível.
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Vovó Bia tinha uma excelente memória, lembrava de detalhes da história da família acontecidos há mais de setenta anos, na sua meninice. Mas para a história geral, tinha de rever de vez em quando os pormenores dos eventos, a fim de atender à curiosidade dos netos, que intercalavam perguntas variadas nas narrativas da serena velhinha contadora de histórias.
Daí, imediatamente após o jantar, recorreu a um dos livros de sua biblioteca, para rever a história de Ivã, o Terrível. Depois de dar uma olhada nas páginas relacionadas, ficou cismando por algum tempo. Pensou:
E se acontecer como na semana passada, que viajamos no tapete mágico? Será perigoso? Será que viajaremos para tão longe e para um tempo tão no passado? (1)
Não demorou muito nas divagações. Decisão tomada dirigiu-se ao alpendre, onde os netos a esperavam, já acomodados em almofadas, sobre o tapete, misto de trançado indígena de taquaras e acabamento com frangas de tricô grosso acrescentado pela vovó Bia.
Sentou-se na confortável poltrona, acomodou-se confortavelmente e esperou que Doralice, Otavio e Carlinhos. fizessem silêncio.
Então começou a contar.
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Esta história aconteceu há mais de quatrocentos anos numa região que é hoje a Rússia. É a história do primeiro Czar da Rússia.
Já nas primeiras palavras, Vovó Bia observou uma pequena transformação no ambiente em que estavam ela e os netos. Era como que uma claridade difusa os envolvesse. Porém, parecia que as crianças nada notaram e seus olhos estavam fixos na avó. Parecia. Sem nada comentara, continuou.
Ao nascer, em 1530, Ivã era filho de um nobre que era o Grão-Príncipe de Moscou e foi batizado Ivã Vassielievitch Grosny, Quando Ivã tinha apenas três anos, o pai morreu e ele foi o sucessor do Principado.
Aos 16 anos, Ivã foi coroado como Primeiro Czar da Rússia.
—Que era um czar, vovó? — perguntou Carlinhos.
—Era uma espécie de rei.
—Então quem colocou a coroa na sua cabeça, se ele não era filho de rei?
—Foi o Bispo da Igreja Ortodoxa de Moscou— explicou a paciente contadora de histórias, que prosseguiu.
A Rússia, naquele tempo, era um aglomerado de ducados, grão-ducados e diversos principados, com relativa independência. Não havia então um reino, ou um país como nós conhecemos hoje.
Neste ponto da narrativa, as crianças perceberam que algo estranho estava ocorrendo. Eles estavam sendo levados, juntamente com a avozinha, para um lugar diferente da Fazenda Palmital.
—Vovó, que é isto? Estamos voando?Estou vendo lá em baixo uma cidade antiga...
A idosa senhora teve certeza de que o tapete era mágico de verdade, e como da vez anterior que contara uma história os conduzia ao local e ao tempo da história que estava contando.
—Sim, estamos voando sobre a velha cidade de Moscou, onde está acontecendo a história de Ivã, o Terrível.
.Os três ouvintes não quiseram mais ouvir a história: debruçaram-se sobre a borda do tapete e ficaram assistindo o que se passava lá em baixo, a alguns metros de distância. Mas a voz da avó lhes chegava com clareza:
Moscou era a cidade principal do principado mais importante de toda aquela região. Ao ser coroado, o Grão-Príncipe Ivã, que exercia seu poder apenas em Moscou, enviou uma mensagem a todos os principados e grão ducados da Rússia, afirmando que seria, dalí por diante, o “CZAR, o supremo e único governante de todas as Rochas”.
Depois de coroado, Ivã, com 17 anos desejou casar-se. A maneira de escolher a noiva foi típica de uma pessoa de seu temperamento autoritário, mandão: Ordenou que duas mil moças fizessem fila para ser inspecionadas por ele.
A escolha foi por Anastácia Romanov, que amou profundamente durante os dez anos que viveram juntos. A morte da czarina — que é como se chama a esposa do Czar — Anastácia foi repentina que o Czar Ivã suspeitou que ela tivesse sido envenenada.
Fascinados, até Vovó Bia se admirava do que via: a coroação, o casamento de Ivã e Anastácia Romanov, e até a morte da czarina e o desespero do Czar. Mais vivo do que um filme de cinema.
Foi a partir desta ocasião que Ivã ficou transtornado. Ficou louco de tanta desconfiança e raiva. A crueldade tomou conta dele, que passou a usar uma vara de ferro pontiaguda, com o qual matava os duques e outros cortesãos que o aborreciam.
Houve uma revolta contra o Czar na cidade de Novogorod. Ivan sitiou a cidade e ficou mais de um mês sentado num trono a céu aberto, que mandou construir no alto de uma colina, de onde assistiu a tortura e a morte de mais de sessenta mil pessoas.
Provocou muitas guerras para consolidar seu poder, e os vencidos eram tratados com extrema crueldade. Aumentou os domínios da Rússia até a Sibéria, a Mongólia e ao outro lado do mundo, no Alaska.
As cenas mudavam a todo instante e tudo o que vovó contava aparecia La em baixo. Quando ouviu a palavra Alaska, Doralice perguntou:
— Ué, vovó, o Alaska é na América. Faz parte dos Estados Unidos.
— Sim, Dorinha, hoje é estado americano, mas foi da Rússia até 1867. Mas isto é outra história. Vamos ver como morreu Ivã o Terrível.
Num de seus acessos de raiva, esfaqueou o próprio filho mais velho, o predileto entre tantos que teve com suas oito esposas. Quando enjoava de uma esposa, mandava-a para um convento e casava-se novamente.
Morreu de repente: estava jogando xadrez com um cortesão, teve um ataque do coração e caiu estatelado no chão, quebrando a cabeça na queda.
Ivã, o Terrível tinha 54 anos de idade.
Extasiadas, as crianças viram o fim do cruel Czar. A cena foi se esvaecendo assim que vovó Via terminou a narrativa, e como num ato mágico, todos estavam novamente no alpendre da fazenda Palmital.
— Bem, agora vamos todos prá cama. — Ordenou vovô, tranqüila como se tivesse saindo de uma sessão de cinema.
(1) Ver contos “Vovó Bia e o Tapete Mágico” e ”Vovó Bia Investiga”
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 29 de julho de 2016.
Conto # 954 da Série 1.OOO Histórias.