Chuva miúda cai da boca da noite, ao meio dia. E, quando o sol aquece o pico da serra, vêm gotas graúdas em sucessivas cusparadas. Morrem estateladas na calçada. Manchas molhadas vão se emendando, ressuscitadas. Sobrepostas, formam enxurrada que escorrem para os rios. Cessada a chuva, vem o frio e logo nas primeiras horas da manhã, gavião voa rasante. A galinha chama a filharada. Abre o bico. Reclama. E cobre com suas asas a pintainhada. Nas primeiras águas, berra o boi solto na manga, corre o cavalo batendo os cascos, sacudindo o pescoço, roncando atrás de uma égua no cio; ronca o trovão, vem a fartura, transborda o leite na gamela; sopra o vento na janela e na palma do tucunzeiro. A mulher do vaqueiro trabalha feito saúva, e tem todo ano um filho. Soca pilão, debulha milho, arranca malva, varre o terreiro, faz a comida, e engorda o porco no chiqueiro, tange a galinha, toca o galo pro poleiro; serve o prato do marido e se banha nas águas do ribeiro. No fim da tarde, cata piolho na filharada e espera o marido. O sol se põe, depois vem a aurora. Novo dia se levanta. Canta longe a cocar no ninho. A camponesa colhe os ovos, deita na galinha criadeira, nascem pintinhos. Crescem juntos os pretos chuviscados de branco, filhos postiços da galinha amarela; e os amarelinhos, filhos da mãe preta. A galinha cisca no terreiro e vai para a horta. O pé não passa na tela de passarinho. Os pintinhos vazam por baixo, num vão que só cabe um dedo. A mulher joga milho, e de novo atrai a mãe das crias. Os pintinhos piam espavoridos. A galinha corre cacarejando, chamando a pintainhada: kuá... kuá... kuá. Kuákuá-rá-kuá-kuá. Carcará. Corre pra lá e pra cá, até que um atende ao chamado, os outros o seguem, e todos vão para o quintal fustigar um filhote de cobra verde na grama. O galo finge que nada vê. Não vê a raposa levar na boca a galinha pedrês. A aurora tinge a negritude com matizes vermelho-alaranjado. Atrasado, canta o galo no terreiro. Voa um bando de pombas assustadas. Batem asas. Acordam o vaqueiro que dorme. Homens de perneiras e gibão assumem os postos. O gado escorre fino, na ponteira. Zulmiro conta quatrocentos e quarenta. O preço do pasto é por cabeça. Faz a conta. Onofre entrega-lhe um alforje cheio. O fazendeiro conta o dinheiro. Tudo no combinado.
— Minhas recomendações ao Coronel Generoso.
— Sou por ele, todo agradecido. Obrigado pelo rancho.
— Precisando, estou pronto.
A boiada segue o fio da estrada. Na dianteira, Laudelino sopra o berrante. Onofre faz a guia. João Velho toca o gado com outros vaqueiros. Não precisa apertar o passo. A jornada é curta para um dia. A onça parda espia atrás de um murundu. Conta o gado. Não se atreve a meter-se entre os cascos. Espicha os olhos suplicantes a Deus, e pede seu repasto. Não há cria nova, nem boi machucado. Só assustadoras montanhas de carne em movimento: uma tonelada de carne cada boi leva nas costas. A cabeceira vai longe. A retaguarda é tardia. Deus escuta. E não atende a prece felina, porque também Euzébia pedia proteção divina para os vaqueiros e gado. Evem, Onofre com a boiada que pastou no Gorutuba. Suada, expele o rio que bebeu na invernada, e traz a pastagem na carne. Só boi gordo, no ponto de balança. Mais de quatrocentos. A vaqueirama não se cansa de aboiar:
‘Avante, Gracioso... Arreda, Matreiro!...Vai Samburá... Arreda, menino, a boiada vai passar! Bôooi!’
O povo admira.
— Generoso tem muita terra. E gado. Deve ter dinheiro guardado. Se comprasse uma patente de coronel, ninguém ganhava dele a eleição em Juramento. Mas não quer. Não quer saber de política nem de patente. Não presta favores a troco de votos. O que dá com a mão direita, a esquerda não vê. É contado como justo. Jamais se associou a manobras que a política impõe. Não tem vergonha de ser honesto.
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Adalberto Lima - fragmentos de Estrada sem fim...
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