O sol gastou  metade do céu. Sombra, só do burrinho. O pobre animal  dava coice ao vento e batia com o rabo, tangendo mutuca. Pau alto só na beira da grota, ali na aba do morro, era mata de cerrado, torta e baixa, pouco verde e muita casca grossa.  Vintém sentou sobre as patas traseiras, com os olhos arregalados,  preparado para atalhar o burro, se o mulo tentasse fugir novamente. Estava amarrado, mas o cabresto era fraco. Xerém aquietou-se. Ergueu as orelhas, emparelhadas para cima, assuntando o tempo, sem sair do lugar... Só trocando de perna, de vez enquanto, ora por causa do cansaço, ora por causa das picadas da mutuca. Algum perigo ele pressentia. Cachorro Vintém levantou  as vistas em missão de reconhecimento. A mata rala deixava crescer capim nativo, por baixo, de modo que bicho pequeno,  passava sem ser visto. Mas Vintém não tinha interesse por nenhuma caça. Estava triste, como que padecendo trauma de infância e juventude. Já era um cão velho, desprezado desde novo.

João vasculhou outra vez os bolsos e alforjes, procurando por munição. Encontrou dois projéteis no bolso velhaco, aquele pequeno  bolso que fica escondido por dentro, entre a calça e a pele, ao nível da cintura.  Era a reserva de munição da caçada anterior, um dia antes, quando José Lino ainda era vivo. Vintém  levantou-se, de supetão, João entendeu que o burro ia fugir outra vez. Apoiou o cano da carabina no “V” da forquilha. Municiou. ‘Vou matar esse burro desgraçado! Fico a pé, mas mato esse burro covarde.’  O ombro doeu.
 Vintém olhou com tristeza, sentiu-se como Baleia, na mira de Fabiano. O alvo era Xerém, mas em seguida, seria a vez de Vintém encontrar-se com seus antepassados no paraíso canino. Eriçou o pelo e postou-se em missão de batalha. Sabia que o dono encontrara duas balas, uma para abater o burro fujão, outra para o cachorro desqualificado. O desqualificado  era ele. Pobre Vintém, agora não valia mais nada. Nem um vintém! Nem carne tinha para alimentar os urubus. Tranquilizou-se por um momento, examinando o cheiro hormonal procedente de João Velho. Vintém não era o alvo. Nem Xerém.
 A onça estava perto, arrastando a barriga no chão, abanando o rabo, calculando tudo, pra não errar bote. Rosnou. Com esse artifício ela sabe que põe por  terra  o moral da presa. João Velho entendera a inquietação de Xerém. Volveu os olhos na direção do despenhadeiro e  sentiu que era a hora de vingar a morte do filho. O felino tinha voltado para fazer o repasto do cabrito e matar  o bode. Mas onde escondera a carcaça? Não via pedaço de roupa de José Lino, nem pelo menos uma botina descalçada na luta. Seu filho não morreria sem lutar. Isso João tinha certeza. Encorajou-se. ‘É hora da vingança!’ Puxou o gatilho duas vezes seguidas e consecutivas, sem espaço de pensamento. O  primeiro tiro acertou o meio da testa da onça e quando ela  virou tombada, recebeu  o segundo impacto debaixo das costelas. Vintém avançou com o pelo ouriçado, aproximou-se de cara feia, com os dentes abertos, feito hiena... A onça já estava morta. Xerém trocou de pé e apontou as orelhas para baixo. Há pouco João Velho  tivera  vontade de mandar o burrinho  para o mundo dos mortos... Mas agora... Agora Xerém merecia um descanso, uma aposentadoria, até sua partida definitiva para céu dos muares. ‘O céu cheio de bichos deve ser  bonito. Bicho de todo jeito. Só bicho manso...’ Se existe bicho que João quer ver no céu é passarinho. Nunca matou nenhum. Nunca prendeu nenhum passarinho em gaiola. Matou duas onças por se achar  no direito de matar até seu semelhante, se não houver outro recurso para salvar a própria vida. Pecar todo mundo peca. Até os animais pecaram. Quando Adão pecou, os animais foram atingidos pela culpa do pecado. Não seria justo que na remissão, eles também fossem alcançados pela graça do perdão? Será que tem animal no céu? Se gambá for para o céu leva o fedor? ‘Não, o céu não tem mau cheiro. Só cheiro bom!’ Pobre compra perfume barato, que fede. Se pobre for para o céu... —‘Deixa de pensar besteira, João Velho! Tem mais pobre no céu que rico no inferno. Ninguém vai para o céu por ser rico ou por ser pobre.    
***
Adalberto Lima - trecho de Estrada sem fim...(ficção)
Imagem: Internet