O relógio de parede pinga reticente... Euzébia reza o terço das três da tarde, e põe-se a pensar: Logo ela, que tanto queria  guardar as melhores lembranças do  filho, tinha agora a triste sensação de perda. Morte trágica... Não podia ser! Seu filho único, morto! Se o pai estivesse com ele, o filho não teria morrido. João Velho  é respeitado, não bole com ninguém, mas só de ouvir seu verdadeiro nome — João Ferreira da Silva — até cachorro treme,  mete o rabo entre as pernas e foge  choramingando. João nunca foi bate-pau de ninguém. Só dele mesmo. Não foge nem do trem  carregado de dinamite. Homem de palavra e coragem aquele velho... mas pra brigar com onça? Tem mais idade não! Ele mesmo contava que voltando da Vila Mimosa, topou com dois malfazejos na Afonso Pena, e abaixo de Deus, a salvação foi um toco de faca, que carregava na cintura. Um correu. O outro ficou esticado no chão... O Rio de Janeiro era bom, mas teve que deixar tudo e fugir. Voltar às suas origens, onde a paz promete reinar por mais algum tempo. Largou o serviço de jardineiro no colégio dos padres, sem avisar.

Suas  lembranças remontavam momentos a sós com Euzébia, e traziam à baila travessuras  contadas por ele mesmo, quando se deitava com ela para dormir.
— Somos uma só carne e um só corpo, João. Sinto a culpa de suas traquinagens pesando em meus ombros.
João não perguntou se a mulher se referia ao dano que  ele praticara na praça Afonso Pena,  ou outras tolices que fizera quando jovem.
— Eu ainda era solteiro, minha santa. A culpa é só minha.
Era impossível ela saber das travessuras na chácara de Alice, das idas e vindas à Vila Mimosa. Pecados, pecados, quem não os tem?  Ele não sofria mais remorso algum por causa de seus pecados. Confessara todos e pagara penitências, leves e pesadas conforme a gravidade da falta. Lembrava com simpatia de uma confissão ao padre Davi. O padre atendia na capela do Marista, todas as tardes de terça e quintas-feiras. João se confessara na terça, e na quinta-feira da mesma semana, estava ele novamente, aos pés do confessionário.
— Quando foi sua última confissão, João Velho? Conte seus pecados, depois da última confissão.
— Pecado grave depois da confissão de anteontem, nenhum. Mas deixei de contar um pecado antigo...
O padre mexeu-se do assento e mudou a almofada de lugar. João pensou: ‘Agora a penitência vai ser ajoelhar sobre caroços de milho...’  Mas o padre Davi sorriu docemente: — ‘Coloquei todos os seus pecados num saco e mandei embora. Vá em paz, João. E não se esqueça de colher as  mangas maduras, antes que caiam ao chão. ’
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Adalberto Lima - trehco de Estrada sem fim...
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