Afrísio Experiência

– Me dá uma canjica.

E quando a mocinha amarela e franzina da barraca de doces vem com um líquido branco cheio de grãos boiando, ele

– Não, mocinha. É canjica. CAN-JI-CA. Entendes?!

– Sim, moço. Aqui está o que o senhor pediu. Canjica. CAN-JI-CA. Entendi!!

– Isso não é canjica não. É mugunzá.

– Não, senhor, o que eu trago em minha mão é canjica. O que o senhor quer; é angu, é? Aqui é só doce. Na barraca só tem esses doces mesmo.

– Não, não. O que eu quero é de milho;

verde;

batido…

A moça amarela o interrompe – com açúcar?

– Isso, e com leite, de coco; e com leite, de vaca.

– Eu bato e coo.

– Exatamente, tu bates e coas.

– Curau! Reduz a moça a receita.

– Canjica! Voz alterada, testa franzida: o rapaz.

A noite estava fria, mas também estrelada. Ao entrar naquele estacionamento, as bandeirinhas encobriam as estrelas. O trio de forró ainda se ajeitava testando seus instrumentos.

A quermesse prometia bem mais que uma noite boa; uma experiência.

– É curau. Sussurra uma senhora às suas costas. Vestindo preto e com um véu cobrindo o cabelo mal pintado.

– É canjica. Isso de que ele fala é canjica. Berra um homem de meia idade, óculos de grau e sobretudo marrom.

No cheiro de milho assado, abriga-se a fumaça. A chama das fogueiras quase alcança as pontas das bandeiras. A música começa e corre para abraçar tudo tal qual mainha ao me ver descer na rodoviária.

A sanfona silencia. Assum Preto cego dos óio nem canta ainda. O zabumbeiro disritmia, os pescoços se esticam para ver o que se assucede na terceira barraca de comida típica da esquerda para a direita.

A atendente amarela leva de volta o prato de mugunzá e retorna com tudo o que há.

É bolo é de fubá;

É de coco a cocada;

Até vatapá, de outra barraca, ela manda buscar.

O vão vai se enchendo dum casal que preenche todo o salão.

Grande; pernas grossas; saia de algodão barato e curtíssima: Ela era grotesca.

Suava às picas e dançava não só com o corpo; eram cabelo, pernas inchadas e olho.

Se a olho de baixo pra cima, a lua parece sua barriga.

Conduzia-a, um senhor. E não estou sendo polido, ele é que devia ter uns sessenta anos e até o cabelo que escapava do ouvido era branco.

Ela dança como quem pisa. Era furiosa, era urgente. Suas coxas se encaixavam como tesoura nas coxas dele. Ele é firme, apesar da idade é duro e, num paradoxo humano, a conduz com classe e leveza. Numa de suas soltadas de mão, a dançarina finca o pé para chamar atenção de Afrísio e confessa: para mim também é canjica. Não aceita curau não. E quando volta, reenrolando-se pelo braço de seu homem, deixa um rastro de suor no ar.

A música vira, a parada é marcada pelo triângulo. O senhor e a dama descem se estrebuchando até o chão. Da pele do zabumba vê-se vibrar o gliter que cai da cortina. O sanfoneiro rasga a voz em boca chiusa anasalada e ordena a subida, o senhor no alto já: Não permitas que te empurrem isso não. Ficarás igual a mim, com o que não queres. Eu como isso há cinquenta anos. É canjica, eu sei que é, eu tenho certeza. É canjica.

A dama e a atendente se entreolham, em cumplicidade. As mulheres se enfrentam ou pedem-se socorro. Não entendo o que dizem os olhos.

Afrísio se volta para a barraca, apoia-se na bancada e LEve ISso daQUI, moça. Eu represento não só a mim, sou uma nação toda. Não me importa o gosto igual, quero o que eu vim pegar. Você adoça seu café com rapadura? É doce, é doce igual a açúcar, mas você não a usa.

– Eu quero a minha canjica. Continua a falar o nordestino.

Olhos atentos. A música anima. O senhor cochicha no ouvido de Afrísio, Tenho que voltar pra minha gorda. Afrísio não o perdoa, Respeita sua mulher, seu porra. Resmungando, volve o rosto para a barraca. Sua cara dá de cara com a cara da amarelada.

Os dançarinos zunem. Enquanto rodopiam, não se nota que ele não a admira. Já ela, seu olhar se esparrama: encharca o chão e o toma. Profundamente.

– Só tenho curau. Eu sinto muito. (Diz a atendente amarela a Afrísio)

– Já eu, sinto tudo.

O zabumba descarrega reflexos de tudo ali. Quando a vida dá ritmo, esquece-se que o triângulo ainda está por vir. Eu vejo cores e, por um segundo, me transporto para minha terra.

Equilibro-me num pé só e

deixo o som me usar.

Sou nortista.

Desgarrado, vim aqui (atarantado).

Sou curvo, alto, calmo e calvo.

Tão são...

Sou sinesteta. Sem querer esbarro minha mão na própria mão que é minha – desnivelo – fica amarelo todo o salão.

Acalmo – pés voltando ao chão – muito embora se me tocas agora, eu choro.

A dama sua, também sua, ainda o frio está ali.

O senhor – com o braço reto – a escorre. Solta, vai-se a o olhar. A dama volta, sempre volta, sem prever onde vai ficar.

Parece enjoada, apesar, parece que em si tem vida.

Ela pende.

Cai despencando ao chão; saia; cabelo e mãos.

A sanfona pausa, o triângulo ainda insiste em soar, mas no VAI NASCER, esmaece-se e cessa. Uma correria pipoca, outro corre-corre se forma. Da ambulância no portão saem socorristas com maca na mão. O senhor se ajoelha com as pernas entre a cabeça caída da dama. Chora ao perceber que a sua mulher não estava gorda, estava grávida. E por tudo pelo que ela deva ter passado ali, em si, calada. Não querendo mudar. Só acompanhar seu senhor em sua rotina.

Ao assistir àquela mulher agarrando a mão de seu homem, Afrísio renova a convicção no que quer.

Ela faz isso por paixão, ele faz isso por paixão. A maca emerge do chão com a senhora aos berros de dor e o marido – torpe ainda em seu íntimo mundo – mãos na cabeça, e guiando. Queria enxergar a lua por entre as bandeiras – aos prantos. De dor também. Segue a dama, uma mão solta e a outra mão a agarra de volta e parecem que dançam. Ainda dançam no silêncio da canção: TiM... TiM... TiM...

O triângulo volta a soar um pontual tilintar. A mão experiente do instrumentista está a postos e molenga, o que a faz pender-se e tocar, pelo fantástico que ocorrera.

Insinua-se a tempestade.

Esta não passa, mas a atendente sim. E segue os socorristas até a saída. Dedos em testa, boca aberta, mãos entre pernas a cambalear. Tem uma espécie de cumplicidade entre as mulheres que não consigo decifrar.

Vendo a barraca sozinha, Afrísio entra. Mexe na plaquinha errada. Passa o dedo úmido de cuspi; É caneta permanente. Segura-a com as duas mãos e a quebra bem no meio, bem no meio de sua coxa. Aquilo só me faz rir. Desesperado, procura um papel, não acha. Pega a lona de proteção da barraca, arranca uma parte com o dente e escreve nela com uma lasca de carvão ainda quente

CANJICA.

Põe a placa no mesmo lugar e, quando o som recomeça, já se vem bulindo. Feliz da vida por se ser.

A atendente retoma seu posto, toma Afrísio o lugar do senhor dançando, rodopiando no salão, só que sozinho.

Larga-se

Reave-se

Amando-se por estar ali, assim.

– Canjica, por favor!

E ela o traz pra si.

As luzes amarelas foram se apagando, as brasas que resistiam emitiam uma fumaça fina e longa, o cheiro de milho das espigas jogadas ainda era notado e o chão estava imundo. As faxineiras chegavam, balançando as cabeças num Não, enquanto olhavam as bandeiras, a lama assumia as barracas. O povo todo foi embora. Só pegadas na lama agora.

O que é aquilo amarelo no chão? Pergunta uma das faxineiras.

Eu – o sanfoneiro – respondo, desarmando o fole para ir-me embora, É vômito. O nortista verteu tudo o que consumira. Ele chegou manso – meio troncho – parece que queria o que não tinha. Quando a bagunça tomou conta, foi mais rápido que uma dança, ao levantar meu olhar – para ver se a buchuda paria –, já estava tudo lá. O chão amarelo, a atendente não entendia o que o rapaz queria, deu-lhe um prato à revelia.

– Era canjica?

– Não, era curau de caixinha.